Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

‘Ofertório de Heresias’: um convite ao corpo, ao desejo e ao prazer

Iêdo Paes nos lembra que a recusa e o enfrentamento aos dogmas que aprisionam são tão antigos quanto o falso moralismo

Créditos: Divulgação Créditos: Divulgação
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Lançado em abril pela editora Caravana, Ofertório de Heresias, livro de estreia do escritor pernambucano Iêdo Paes, é um verdadeiro convite corpo, ao desejo e ao prazer.

Com uma escrita sonora, viva e pulsante, os 41 microcontos que compõem a obra nos fazem acessar segredos inconfessos e desejos reprimidos dos personagens. Pessoas comuns, cujos pensamentos e ações são guiados na maior parte do tempo pela hipocrisia das convenções morais, estabelecidas sobretudo para reprimir e controlar o sexo feminino. Provocador, o autor lança luz nos silêncios, nas interdições e nas violências que as bases ideológicas que orientam templos considerados sagrados têm imposto às mulheres, como também aos homens.

É o que percebemos nas histórias de Maria Alcina, Dona Jussara e Joice, mulheres que detêm todos os atributos que socialmente se esperam de uma mulher. São discretas, pudicas e, no caso da Ester, “pacata, prestativa e de uma índole invejável”. Além dessas características, têm em comum o fato de frequentarem assiduamente missas e cultos, espaços nos quais dão vazão aos prazeres da carne que pulsa, e diuturnamente é reprimida. Verdadeiras heresias que não devem ser reveladas nem mesmo em um confessionário, sob o risco de serem condenadas ao purgatório.

Enquanto Maria Alcina, Dona Jussara, Joice e Ester transitam de maneira conflituosa entre o sagrado e o profano, Zanete, Bernadete, Rita de Cássia e Amara “gostavam de namorar e não se importavam com nada dito pelas más línguas”, subvertendo a dicotomia entre céu e inferno. São donas do próprio nariz, senhoras do destino. Em suas travessias, o sexo, o amor, os orgasmos, sejam com homens ou mulheres, são motivo de festa, de celebração. É o que elas ofertam a si mesmas e aos que se entregam aos seus despudores. É como se o autor que dá vida a elas dissesse: “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, conforme cantou Chico Buarque de Hollanda.

E é justamente a ideia de pecado, de casamento indissolúvel, que aprisiona e submete Neusa, Verônica e Assunção à violência de gênero, cujas tramas e enredos são um dos pontos altos do livro. Fazendo-nos perder o ar, Iêdo Paes conduz narrativas que apontam os abusos físicos e psíquicos dos quais as mulheres são vítimas, muitas vezes de sujeitos como Teófilo, que aos olhos dos outros era um “homem correto e dedicado à esposa”, mas que no silêncio do lar “apagava as pontas do cigarro nas costas de Assunção até formar seu nome”. Vale destacar que o escritor traz ainda a violência entre casais formados por mulheres, tema pouco abordado na literatura e na sociedade em geral.

Em seus microcontos, Iêdo Paes trata também do peso das convenções morais nas escolhas sexuais e afetivas dos homens, outro tema incipiente no campo literário. Em alguns textos, nos deparamos com homens casados, com machos alfa viris, portadores de corpos esculpidos durante horas na academia, que na primeira oportunidade permitem transbordar sentimentos e desejos recalcados por pessoas do mesmo sexo. É o caso de Otoniel, Enoque e Hermes, que nos momentos de prazer, dizia ao seu amante: “meu homem, meu menino, meu amor”.

Ofertório de Heresias chega ao mercado editorial num momento bastante oportuno, em que há uma espécie de cruzada contra o direito de celebrar o amor, o prazer, a liberdade e a vida.

Com suas histórias, Iêdo Paes nos lembra que a recusa e o enfrentamento aos dogmas que aprisionam são tão antigos quanto o falso moralismo.

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