Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

O voto antipetista em Jair Bolsonaro é uma falácia

O voto em Bolsonaro não é anti-PT, é um voto composto por afinidade de valores, visões de mundo e outros fundamentos morais que distinguem o presidente de toda e qualquer outra coisa viva e presente na política brasileira

Foto: Reprodução
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Remonta ao menos a 2018 a insistência de que o voto em Jair Bolsonaro não é, exatamente, um voto em Jair Bolsonaro, mas um voto contra o Partido dos Trabalhadores. O tal voto antipetista ou anti-PT. Formulação, por si só, extremamente reducionista que, curiosamente, continua a existir mesmo após quase quatro anos de um mandato presidencial nefasto como nunca se viu e uma resiliência eleitoral extraordinária por parte do atual mandatário.

Para demonstrar o que sustento no título deste artigo, começo com dados. Em seu livro O Brasil Dobrou à Direita, Jairo Nicolau investiga a hipótese do voto antipetista para explicar a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. O autor usa dados de uma pesquisa do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) e conclui, em suas próprias palavras: “Ou seja, existem mais eleitores alheios à disputa PT/Anti-PT do que o debate público dá a entender”. Isto porque quase 50% do eleitorado brasileiro não se posiciona nem a favor nem contra qualquer partido que seja. O que se declaram antipetista são menos de 30% do eleitorado.

Ainda em 2018, é preciso lembrar: com exceção da candidatura de Fernando Haddad, todas as outras campanhas, em graus diferenciados, sustentavam uma oposição antipetista: de Marina Silva a Geraldo Alckmin, passando por Cabo Daciolo, Henrique Meirelles e mesmo Ciro Gomes. Por que então Jair Bolsonaro dentre tantas opções antipetistas? Porque ele melhor representou o antipetismo, como argumentam certos “analismos” até hoje abundantes na grande imprensa e alhures? Conversa fiada. Aquilo que distinguia Jair Bolsonaro de seus concorrentes igualmente antipetistas era, por óbvio, uma outra coisa.

A justificativa do voto em Jair Bolsonaro como um voto antipetista é mais ou menos como a justificativa do voto anticorrupção a favor ou contra alguém: é um excelente expediente diversionista que oculta as verdadeiras e reais razões para o voto em alguém. Lembrem de 2014. Quantos e quantas não justificavam o voto em Aécio Neves como um voto “contra a corrupção do PT”? Eis que na reta final aparece, sem margem para dúvidas, um caso de corrupção envolvendo um aeroporto no município de Claudio, em Minas Gerais, e o então candidato do PSDB. Nada disso fez com que o voto “anticorrupção do PT” em Aécio Neves, que por muito pouco não se elegeu presidente, recuasse diante da evidente contradição dos termos.

Quão estranha não é a persistência do argumento do antipetismo como elemento determinante da sobrevida eleitoral de Jair Bolsonaro em 2022? Afinal, se hoje os liberais e democratas não estamos amargando a reeleição desse projeto fascista e antidemocrático de poder é porque seu muro de contenção é, justamente, o maior ícone do Partido dos Trabalhadores que venceu a disputa do 1 turno com uma diferença de mais de 6 milhões de votos. Forçoso lembrar que esse mesmo candidato foi preso em 2018 justamente para não vencer as eleições. Tão logo foi solto e com os direitos políticos recuperados, voltou à liderança da disputa presidencial cujo favoritismo se manteve até mesmo da cadeia. Cadê a tal força colossal do antipetismo?

Eu adoro fazer certas incursões etnográficas com eleitores de Jair Bolsonaro que justificam seu voto como um voto antipetista sempre que posso. É curioso como esses tipos sempre começam afirmando que não são bolsonaristas. Aquilo que na psicanálise é chamado de negações preventivas ou as negações não solicitadas. Como bem sublinhou o saudoso Contardo Calligaris, a coisa se resume assim: “Sonhei com uma mulher mais velha, loira como minha mãe, mas não era minha mãe, não era mesmo. Claro, claro….”.

Eu não preciso gastar mais do que cinco minutos desenrolando a prosa para começar a trazer à superfície as razões do suposto voto antipetista em Jair Bolsonaro: rapidinho começam a surgir ditaduras socialistas, ideologia de gênero, sexualização das crianças, punitivismos, aversão a quaisquer perspectivas universalistas de Direitos Humanos, reservas com certas minorias políticas e por aí vai. Nem mesmo a corrupção para em pé quando se demonstra, com dados e fatos, a arquitetura corrupta que sustenta essa gente que nos (des)governa.

Como resumiu Calligaris: “Para esses eleitores que se consideram “esclarecidos”, o ranço autoritário, antidemocrático, homofóbico, misógino e racista não seria algo que eles tiveram que engolir (tapando o nariz) para acabar com o PT ou para ter uma política econômica liberal. Na verdade, para eles, o tal ranço talvez seja a verdadeira razão para eles votarem em Bolsonaro —uma razão que eles escondem de si mesmos”. Podemos incluir no percurso de quase 4 anos que nos separa de 2018 o negacionismo científico, o desprezo pelo direito e vida alheias e a baixa convicção republicana e democrática.

O voto em Jair Bolsonaro não é um voto anti-PT, é um voto composto por afinidade de valores, visões de mundo e outros fundamentos morais que distinguem o presidente da República de toda e qualquer outra coisa viva e presente na política brasileira. Temos, no Brasil, o desvelamento de uma ampla base de extrema-direita com claríssimas e generosas doses de fascismo.

Enquanto esse papo de “ódio ao PT” prosperar como justificativa do voto na extrema-direita que convencionamos chamar de bolsonarismo, mas que o precede, o fascismo continuará contando com todos os falsos pretextos que estão lhe alçando ao mainstream da política brasileira. O antipetismo é, antes de qualquer coisa, um falso atenuante às posições do extremismo fascista da direita.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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