Justiça

O Varadouro, o violoncelo e as cicatrizes deixadas no povo negro

Casos diários de racismo no sistema de justiça brasileiro evidenciam que mudança é necessária e urgente

Justiça do Rio determinou a soltura de músico negro preso em Niterói. (Foto: Reprodução) Justiça do Rio determinou a soltura de músico negro preso em Niterói. (Foto: Reprodução)
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Em plena pandemia viral, enquanto centenas de milhares de corpos morrem outros milhões sobrevivem sem alma, sem identidade e sem vida. São várias formas de extermínio do nosso povo. Necropolítica, genocídio, branqueamento, epistemicídio, efeitos psicossociais do racismo e outras tantas doenças nominadas, diagnosticadas e sem previsão de cura. No meio disso, eu lembro que acabei de gravar aulas de filosofia do direito para um curso preparatório para as carreiras jurídicas. E ali, expondo aqueles conteúdos que são obrigatórios, eu percebo a ausência de qualquer espaço para discussão das relações raciais no direito.

Anna Beatriz, que foi hostilizada e autuada por desacato ao exercer a advocacia, registrou Boletim de Ocorrência na última semana. Foto: Arquivo pessoal

Então eu me pego pensando: será que o delegado do Varadouro, em Olinda, tivesse o mínimo letramento racial, ele teria mais respeito com a colega advogada Ana Cristina, que exigiu falar a sós com o seu cliente, como lhe garante a lei, mas terminou sendo autuada por desacato? É necessário destacar que se trata da mesma delegacia onde, em maio, uma advogada negra foi arrastada a força e ficou em cárcere por 12 horas, sem direito a ir ao banheiro e com suas roupas urinadas

Será que a “sua excelência” trataria aquela mulher preta aguerrida com a mesma deferência com a qual atendeu os advogados brancos que chegaram depois, se não tivesse sido educado a visualizar a mulher negra como figura subalterna? Será que ele entende o viés machista e racista que faz com que dê tratamento diferenciado a advogados brancos? Será que esse profissional já se racializou alguma vez na vida para perceber o quanto reforça os pactos narcisísticos da branquitude quando deixa as advogadas pretas esperando e recebe os advogados brancos com sorrisos e tapinhas nas costas? Provavelmente não.

Fico pensando também na juíza que expediu a ordem de prisão para o jovem violoncelista carioca, aquele que passou 5 dias na prisão por um roubo que não cometeu. Será que se ela tivesse o mínimo de conhecimento sobre direito e relações raciais, acharia suficiente o reconhecimento fotográfico para expedir mandado de prisão preventiva contra um jovem sem qualquer passagem pela polícia, com a justificativa de que a prisão era necessária para garantir a tranquilidade da vítima?

Será que hoje, essa juíza já conseguiu entender o viés racista da sua decisão, sobretudo depois da aula dada pelo juiz André Luiz Nicolitt, que revogou a prisão e questionou “como a foto de alguém primário, de bons antecedentes, sem qualquer passagem policial vai integrar álbuns de fotografias em sede policial como suspeito”? Um juiz negro, com consciência racial, não apenas fez justiça no caso do jovem carioca, mas denunciou em sua decisão o racismo entranhado nas instituições que entendem um jovem negro como “suspeito natural”.

A justiça brasileira precisa de mais Nicolitts. O sistema de justiça precisa se racializar urgentemente. Por isso, em recentes memoriais apresentados ao Conselho Nacional de Justiça, a Abayomi Juristas Negras propôs que a formação em direito e relações raciais seja exigida em todos os concursos públicos para magistratura. Destacando que, “quando falamos em relações raciais, falamos em dois polos, pressupondo que não existe neutralidade e não existe um sujeito universal. Portanto, o letramento racial deve ser obrigatório para pessoas negras e não negras. Isso é imperativo para o sucesso de qualquer política institucional de equidade, tendo que se tornar disciplina OBRIGATÓRIA nas Escolas da Magistratura e nos editais dos concursos para juiz(a)”.

 

Confiamos que transformações positivas virão do GT Racismo do CNJ, mas, até que as mudanças ocorram, devemos nos perguntar: como cicatrizam as feridas dessas pessoas violentadas constantemente? Enquanto escrevo isso, eu sinto uma fisgada no queloide que tenho no busto. Para quem não sabe, queloide é um crescimento anormal de uma cicatriz que se forma no local de um traumatismo, de um corte ou de uma queimadura e, a depender do local afetado, também pode ocorrer limitação do movimento ou dor. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, uma pessoa negra tem 15 vezes mais probabilidade de desenvolver queloides que uma pessoa branca.

Mas essas são as feridas visíveis, palpáveis. Eu olho para a minha cicatriz e entendo racionalmente porque ainda dói. E as feridas na minha mente? E os queloides nas nossas almas? Como mostrar? Como provar o quanto dói? Como responsabilizar quem os provocou? Como comprovar o nexo causal entre o racismo institucional e a síndrome do pânico? Como demonstrar que a falta de ar que sentimos é consequência dessas violências, mesmo quando não temos um saco nas nossas cabeças?

Mais que isso, como lidar com essas marcas que continuam a doer? No meu caso, eu não vejo outro caminho que não o da luta. Eu me recuso a silenciar, pois seria aceitar morrer em vida. Então, eu busco forças no meu quilombo, na Abayomi Juristas Negras e na sua missão transformadora. Além disso, procuro manter a fé e reforçar a crença de que eu não ando só e de que eu sou porque nós fomos, eu sou porque nós somos e eu sou porque nós seremos.

Ubuntu!

Eparrey, Oyá.

Ogunhê, meu pai.

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