Justiça

O Urubu e a Fênix

Postura indiferente à vida da diretoria do Flamengo nos últimos anos é inaceitável

Alexandre Vidal / Flamengo
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Bem queria escrever uma fábula, como o título sugere, mas falo de personagens da vida real que insistem em negar ciência, responsabilidade e bom senso, os mesmos renitentes no desrespeito a dores e direitos alheios. Poderia intitulá-lo Carta à Diretoria Reaça-Fla, Manifesto pelos Garotos do Ninho ou Vidas Pobres Importam, mas optei por relacionar o pássaro mascote à ave da mitologia grega porque só recorrendo ao divino para crer em dias melhores.

Numa terra cujos governantes se mostram indiferentes à morte de cidadãos em massa, líderes de uma Nação alcançaram seu objetivo de fazer retornar o campeonato de futebol local (para menos de dois dias após o melancólico reinício o torneio ser novamente barrado pela prefeitura), sendo autorizados a reativar seu supertime, como alegres crianças brincando em um velório, sem se dar conta do que se passa ao lado – literalmente ao lado, com pessoas morrendo no hospital de campanha montado ao lado do palco do retorno, o recém setentenário Maracanã.

Pouco após ter sido noticiado acordo indenizatório com mais uma das dez famílias dos adolescentes falecidos no incêndio no Ninho do Urubu, em fevereiro de 2019, o Flamengo ignorou o iminente alcance da marca histórica de 50 mil mortes causadas pela pandemia do coronavírus no Brasil, além de 1 milhão de infectados notificados, fingindo não enxergar uma das maiores tragédias nacionais em 520 anos, batendo o pé que queria porque queria jogar. Os dirigentes, que pechincham e pouco se importam com as famílias dos meninos mortos dentro do clube, mais uma vez ignoram a dor da perda e forçam a barra para seguir como se nada estivesse ocorrendo.

Mais de quinze meses após o incêncio, nenhum aceno de algo concreto pelos meninos: além de acordos mesquinhos e pouco criativos, ficará apenas a já eternizada homenagem da torcida, que desde o jogo seguinte ao trágico episódio entoa no décimo minuto de cada partida o arrepiante “Ahhh! Como eu queria ter Vocês aqui, Honrando o Manto do Mengão, com Raça e Paixão! Mas, essa Nação jamais vai esquecer O Flamengo vai jogar pra sempre por Vocês! Ô! Olê Olê Olê Olê! São Dez Estrelas a Brilhar No Céu do Meu Mengão!“.

Um cântico àqueles que deveriam ser tratados como ídolos, como heróis, mas que, se não pela torcida, seguem esquecidos, abandonados. Como esquecidos se encontram tantos outros heróis que o nosso Estado mata e, por opção, segue sem enxergar e se retratar.

O Brasil é destacadamente o país cujas forças policiais mais matam seus cidadãos no planeta e o Rio de Janeiro lidera com folga essa estatística macabra. Somente no ano de 2019 a PMERJ matou 1810 pessoas (cinco vidas tiradas pela polícia por dia em média, na maior parte negros e pardos), quase o dobro do que matou a polícia dos EUA no mesmo período (aprox. 1078 mortes por policiais em 2019 em todo o território norte-americano, cuja população é cerca de 20 vezes maior que a do Rio). Um estado de 16 milhões de habitantes matou quase o dobro de um Estado de 330 milhões de habitantes, proporcionalmente cerca de 40 vezes mais.

Isto mostra que a chance de alguém ser morto por um policial no estado do Rio de Janeiro é 4.000% maior que a chance de ser morto por um policial nos EUA.

Encontro de Bolsonaro com técnico do Flamengo, Jorge Jesus, em fevereiro. Foto: Marcos Corrêa/PR

Se este alguém for negro ou pardo e morar numa comunidade onde pretensamente exista venda de drogas – como se fosse atividade privativa de comunidades! – , esta chance cresce ainda mais, adquirindo contornos dramáticos, que muitas vezes culminam em inaceitáveis tragédias. No Brasil, o sacrifício de um sem número de inocentes parece ser sempre em vão, prevalecendo o pouco caso a uma resposta efetiva a tantos episódios de covardia e injustiça. Agatha, João Pedro, Marco Aurélio, e tantos outros jovens cujo futuro se viu interrompido pela impetuosidade de um modelo perdido, que insiste em forjar um sistema fincado em morte, sangue e cadeia pro preto, pro pobre.

Não bastasse o descaso em relação à maior tragédia da história do Flamengo e do Esporte no estado do Rio, sua diretoria, que nunca escondeu afeição pelos governos da situação, mais uma vez mostra que a vida não é sua prioridade, encampando discursos que ignoram a dureza dos números e insistindo em negar o mínimo de sensibilidade que o retorno às atividades requer. São os representantes do time do povo se portando como os governantes do povo, não se importando com as dezenas de milhares de vidas e a desgraça de quem mora ao lado, botando a bola debaixo do braço e indo jogar sozinho. Hoje, a diretoria é a negação da própria ideia de coletividade e de solidariedade que o vencedor time tanto enfatiza em campo.

Após 10 anos de seca e décadas sem saber o que era dominar o futebol nacional, o Flamengo renasceu em 2019, conquistando Libertadores e Brasileiro no mesmo final de semana. Justo no ano em que a instituição viveu a maior tragédia de sua centenária história, o Flamengo mudou de patamar. Qualquer um é capaz de concluir que as contratações de peso e a vinda de Jesus modificaram a estrutura e o espírito do time, mas é impossível não relacionar os fatos: o ressurgir da força da instituição passa pelo episódio mais emblemático envolvendo suas crias, em sua casa, em seu ninho, como se dali em diante algo precisasse começar a mudar, a iniciar um novo ciclo, a nascer algo novo.

A precoce partida de Athila, Arthur Vinícius, Bernardo, Christian, Gedson, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo, Samuel e Vitor Isaías é um importante capítulo de um livro que vem sendo construído por nossa sociedade, e deveria, como as covardes mortes causadas pela polícia, demandar respostas firmes, sobretudo de seus responsáveis legais. Ninguém poderia permanecer tão confortável com a perda de vidas de forma tão precoce. Os representantes do Flamengo, enquanto representantes de uma das mais representativas instituições deste país, deveriam ter pressa, sim, em dar o devido reconhecimento ao sacrifício de suas dez sementes, e atribuir a devida importância ao acontecimento que simboliza um verdadeiro renascimento das cinzas para uma era de luz, glória e, é claro, valor à vida humana.

Diferente do Urubu que como uma Fênix sobrevoa nas alturas, a diretoria opta por rastejar e se deleitar sobre a carniça, mostrando numa e noutra atuação o quanto, para ela, mortes se reduzem a números. Onde estão as homenagens? Onde está o reconhecimento do valor dessas vidas? Há um monumento, um museu em memória dos meninos? Algum projeto que destine algo em favor das famílias? Onde estavam esses familiares em Lima, em Doha?

Esta pressa de voltar a jogar deveria ser a mesma de dar reconhecimento àqueles que morreram pelo Flamengo, às verdadeiras fênices que tiveram em seu sacrifício o ressurgimento da glória Rubro-Negra. Deveria ser a pressa de indenizar as famílias dos Garotos do Ninho, e também de oferecer meios de acalentar os tantos flamenguistas e brasileiros que ainda padecem nesta pandemia, negada pela ignorância e prepotência dos que gargalham e posam sorridentes no triste cortejo da massa.

Bem queria escrever uma fábula, como o título sugere, mas falo de personagens da vida real que insistem em negar ciência, responsabilidade e bom senso, os mesmos renitentes no desrespeito a dores e direitos alheios. Poderia intitulá-lo Carta à Diretoria Reaça-Fla, Manifesto pelos Garotos do Ninho ou Vidas Pobres Importam, mas optei por relacionar o pássaro mascote à ave da mitologia grega porque só recorrendo ao divino para crer em dias melhores.

Numa terra cujos governantes se mostram indiferentes à morte de cidadãos em massa, líderes de uma Nação alcançaram seu objetivo de fazer retornar o campeonato de futebol local (para menos de dois dias após o melancólico reinício o torneio ser novamente barrado pela prefeitura), sendo autorizados a reativar seu supertime, como alegres crianças brincando em um velório, sem se dar conta do que se passa ao lado – literalmente ao lado, com pessoas morrendo no hospital de campanha montado ao lado do palco do retorno, o recém setentenário Maracanã.

Pouco após ter sido noticiado acordo indenizatório com mais uma das dez famílias dos adolescentes falecidos no incêndio no Ninho do Urubu, em fevereiro de 2019, o Flamengo ignorou o iminente alcance da marca histórica de 50 mil mortes causadas pela pandemia do coronavírus no Brasil, além de 1 milhão de infectados notificados, fingindo não enxergar uma das maiores tragédias nacionais em 520 anos, batendo o pé que queria porque queria jogar. Os dirigentes, que pechincham e pouco se importam com as famílias dos meninos mortos dentro do clube, mais uma vez ignoram a dor da perda e forçam a barra para seguir como se nada estivesse ocorrendo.

Mais de quinze meses após o incêncio, nenhum aceno de algo concreto pelos meninos: além de acordos mesquinhos e pouco criativos, ficará apenas a já eternizada homenagem da torcida, que desde o jogo seguinte ao trágico episódio entoa no décimo minuto de cada partida o arrepiante “Ahhh! Como eu queria ter Vocês aqui, Honrando o Manto do Mengão, com Raça e Paixão! Mas, essa Nação jamais vai esquecer O Flamengo vai jogar pra sempre por Vocês! Ô! Olê Olê Olê Olê! São Dez Estrelas a Brilhar No Céu do Meu Mengão!“.

Um cântico àqueles que deveriam ser tratados como ídolos, como heróis, mas que, se não pela torcida, seguem esquecidos, abandonados. Como esquecidos se encontram tantos outros heróis que o nosso Estado mata e, por opção, segue sem enxergar e se retratar.

O Brasil é destacadamente o país cujas forças policiais mais matam seus cidadãos no planeta e o Rio de Janeiro lidera com folga essa estatística macabra. Somente no ano de 2019 a PMERJ matou 1810 pessoas (cinco vidas tiradas pela polícia por dia em média, na maior parte negros e pardos), quase o dobro do que matou a polícia dos EUA no mesmo período (aprox. 1078 mortes por policiais em 2019 em todo o território norte-americano, cuja população é cerca de 20 vezes maior que a do Rio). Um estado de 16 milhões de habitantes matou quase o dobro de um Estado de 330 milhões de habitantes, proporcionalmente cerca de 40 vezes mais.

Isto mostra que a chance de alguém ser morto por um policial no estado do Rio de Janeiro é 4.000% maior que a chance de ser morto por um policial nos EUA.

Encontro de Bolsonaro com técnico do Flamengo, Jorge Jesus, em fevereiro. Foto: Marcos Corrêa/PR

Se este alguém for negro ou pardo e morar numa comunidade onde pretensamente exista venda de drogas – como se fosse atividade privativa de comunidades! – , esta chance cresce ainda mais, adquirindo contornos dramáticos, que muitas vezes culminam em inaceitáveis tragédias. No Brasil, o sacrifício de um sem número de inocentes parece ser sempre em vão, prevalecendo o pouco caso a uma resposta efetiva a tantos episódios de covardia e injustiça. Agatha, João Pedro, Marco Aurélio, e tantos outros jovens cujo futuro se viu interrompido pela impetuosidade de um modelo perdido, que insiste em forjar um sistema fincado em morte, sangue e cadeia pro preto, pro pobre.

Não bastasse o descaso em relação à maior tragédia da história do Flamengo e do Esporte no estado do Rio, sua diretoria, que nunca escondeu afeição pelos governos da situação, mais uma vez mostra que a vida não é sua prioridade, encampando discursos que ignoram a dureza dos números e insistindo em negar o mínimo de sensibilidade que o retorno às atividades requer. São os representantes do time do povo se portando como os governantes do povo, não se importando com as dezenas de milhares de vidas e a desgraça de quem mora ao lado, botando a bola debaixo do braço e indo jogar sozinho. Hoje, a diretoria é a negação da própria ideia de coletividade e de solidariedade que o vencedor time tanto enfatiza em campo.

Após 10 anos de seca e décadas sem saber o que era dominar o futebol nacional, o Flamengo renasceu em 2019, conquistando Libertadores e Brasileiro no mesmo final de semana. Justo no ano em que a instituição viveu a maior tragédia de sua centenária história, o Flamengo mudou de patamar. Qualquer um é capaz de concluir que as contratações de peso e a vinda de Jesus modificaram a estrutura e o espírito do time, mas é impossível não relacionar os fatos: o ressurgir da força da instituição passa pelo episódio mais emblemático envolvendo suas crias, em sua casa, em seu ninho, como se dali em diante algo precisasse começar a mudar, a iniciar um novo ciclo, a nascer algo novo.

A precoce partida de Athila, Arthur Vinícius, Bernardo, Christian, Gedson, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo, Samuel e Vitor Isaías é um importante capítulo de um livro que vem sendo construído por nossa sociedade, e deveria, como as covardes mortes causadas pela polícia, demandar respostas firmes, sobretudo de seus responsáveis legais. Ninguém poderia permanecer tão confortável com a perda de vidas de forma tão precoce. Os representantes do Flamengo, enquanto representantes de uma das mais representativas instituições deste país, deveriam ter pressa, sim, em dar o devido reconhecimento ao sacrifício de suas dez sementes, e atribuir a devida importância ao acontecimento que simboliza um verdadeiro renascimento das cinzas para uma era de luz, glória e, é claro, valor à vida humana.

Diferente do Urubu que como uma Fênix sobrevoa nas alturas, a diretoria opta por rastejar e se deleitar sobre a carniça, mostrando numa e noutra atuação o quanto, para ela, mortes se reduzem a números. Onde estão as homenagens? Onde está o reconhecimento do valor dessas vidas? Há um monumento, um museu em memória dos meninos? Algum projeto que destine algo em favor das famílias? Onde estavam esses familiares em Lima, em Doha?

Esta pressa de voltar a jogar deveria ser a mesma de dar reconhecimento àqueles que morreram pelo Flamengo, às verdadeiras fênices que tiveram em seu sacrifício o ressurgimento da glória Rubro-Negra. Deveria ser a pressa de indenizar as famílias dos Garotos do Ninho, e também de oferecer meios de acalentar os tantos flamenguistas e brasileiros que ainda padecem nesta pandemia, negada pela ignorância e prepotência dos que gargalham e posam sorridentes no triste cortejo da massa.

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