Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

O touro dourado simboliza a breguice e o complexo de vira-lata da elite brasileira

E ainda não entendem as críticas, os pichos, os cartazes no corpo do animal

Foto: Reprodução redes sociais
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Às vezes, o Brasil mostra sua face mais terrível com uma obscenidade insuportável. Nada mais obsceno do que a de­si­gual­dade, nada mais obsceno do que a fome, mas há momentos em que essa obscenidade ganha cores, formas, ainda mais bárbaras, totalmente descontroladas.

Um touro dourado.

Esse tem sido um desses momentos. Indecência em grau extremo.

Há uma certa elite brasileira que gosta de se humilhar e de humilhar.

Humilha-se num vira-latismo que expõe orgulhosa e sorridente.

O touro de Wall Street agora em São Paulo! The American Dream!

Nós não somos latinos, somos made in USA!

Humilha-se numa cafonice que ela mesma ostenta, incapaz de identificar seu próprio ridículo.

O touro é dourado! Que coisa mais linda!

Fotos, fotos. Esse momento merece nunca ser esquecido. Sorriam diante da nossa conquista.

Mas, enfim, esse é o menor dos problemas. Ser idiota até esse grau superlativo é direito de cada um de nós. Ser rico, mas ainda provinciano e jeca, é bastante comum. O problema não é que eles se humilhem com prazer e tesão, a questão é que eles gostam de humilhar.

O Brasil passa fome.

O Brasil sofre.

Milhões de brasileiros se asfixiam com a subida dos preços.

O Brasil se afoga.

Boletos, boletos, contas, carrinhos da compra impossíveis.

Mas essa elite sorri com seu touro dourado.

Querem símbolo mais poderoso e mais violento de um país que ainda vive ancorado no seu passado colonial e escravocrata?

Segundo o Datafolha realizado entre 13 e 15 de setembro, 85% dos brasileiros reduziram o consumo de algum alimento, desde o início deste ano, enquanto 67% excluíram do consumo a carne vermelha. E não, não é porque eles viraram veganos subitamente.

Mas não só o “luxo” da carne foi cortado. Arroz, feijão e macarrão também estão sendo limados por 34%, 36% e 38% da população, respectivamente.

O Brasil está passando fome.

Mas essa elite está tão acostumada à completa desumanização daqueles de baixo que olha, mas não vê, ouve, mas não escuta, sabe, mas não sente. Os que ontem eram escravos hoje são invisíveis, os não sujeitos, os zé-ninguém.

Os ninguém cortam até o arroz. E o que eu tenho a ver com ­isso?­ Continuo a ir aos restaurantes.

Os ninguém não comem mais carne. E daí? Eu tampouco, meu dietista e meu personal fitness me botaram um regime vegetariano.

Os zé-ninguém choram. E eu com isso? Eles estão acostumados a chorar. A vida deles sempre foi dura e eles sabem se virar, dar um jeitinho.

Há algo mais pornográfico do que essa elite? Há algo mais brutal?

Ver o país que você ama a sofrer deveria doer. Mas isso se você souber ver, amar, se doer…

Esta é a outra face do processo escravocrata e colonial. A completa desumanização do outro conduz à sua total desumanização, ao seu esvaziamento como indivíduo, ao esburacamento de seu coração.

Há dez anos que moro no Brasil e tenho este país grudado nas minhas entranhas, mas em dias como estes penso que o Brasil que amo é um monstro capaz de produzir as mais inadmissíveis violências.

Essa elite se regozija com seu touro dourado, enquanto falta comida na mesa de milhões de brasileiros.

E ainda não entendem as críticas, os pichos, os cartazes no corpo do animal. Vândalos! São contra a criação de riqueza! Esse povo não valoriza a gente! Coitados de nós, sempre preocupados com esse povo mal-agradecido e indolente.

O Brasil passa fome e eles riem com seu touro dourado.

Publicado na edição nº 1165 de CartaCapital, em 25 de novembro de 2021.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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