Clarisse Gurgel

Doutora em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professora do departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Opinião

O tato e o voto

Ao reivindicar o pragmatismo no voto em Lula, o sujeito se posiciona única e exclusivamente como eleitor. Junto com o voto, porém, precisa vir o programa

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante evento do MST. Foto: Reprodução
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Nessas eleições, de 2022, temos ouvido muitos declararem o voto em Lula (PT) já no primeiro turno, sob dois argumentos principais – a partir do correto diagnóstico de que vivemos sob um regime de traços fascistas:

1) sermos pragmáticos;

2) impedirmos a reeleição de Jair Bolsonaro (PL), apoiado, hoje, fortemente, por redes de fake news.

Há um elemento que conjuga essa defesa do pragmatismo e a preocupação com as fake news: 1) a ausência de mediação de que o pragmatismo se traveste; 2) o excesso de mediação que o mundo virtual oculta.

Veremos que o resultado dessa conjugação é um caráter ilusório comum, de suposta ausência disso que estamos chamando de mediação. Seja pelo pragmatismo, seja pelas redes, temos uma ilusão de que estamos agindo de modo imediato, sem nada mediando.

Ao reivindicar o pragmatismo no voto em Lula, o sujeito se posiciona única e exclusivamente como eleitor. Não está pensando em termos de princípios, projetos ou programa, mas, apenas, em termos imediatos, concentrando a ação em um único ato: o voto. Ocorre, porém, que o voto é uma mediação, o instrumento intermediário entre representado e representante.

Os mesmos que acreditam que a solução é o voto pragmático em Lula já no primeiro turno não conseguem enxergar este voto como um gesto, em termos brechtianos – acúmulo de um processo histórico, síntese de uma longa narrativa. O voto é meio. E o voto em Lula, quando assume esta natureza e estes limites, precisa expor os desafios, as oportunidades e auxílios que carrega com ele. Junto com o voto, precisa vir a campanha: ir a campo.

Lula, porém, conjuga esses dois papéis – de meio e de fim. Ele é o bureau, o caudilho, que flerta com o agronegócio e tenta convencer o capital financeiro de que é mais eficiente que um Paulo Guedes pós-pandêmico. De tal modo que a Frente Ampla é muito mais uma fronte estreita.

A arena digital

Alguns se preocupam com o risco de reeleição de Bolsonaro através das fake news. O Supremo acredita que a solução está em regulamentar o Telegram.

Em tempos em que a verdade é absolutamente questionada, a realidade converte-se, também, em elemento pueril, condicionada ao critério de observância ou não do objetivo do sujeito. Este é, aliás, o modo como Gramsci descreveu a doutrina pragmática: aquela em que a verdade é suspensa em nome do melhor resultado.

As mediações digitais atrofiam a capacidade de ação política, quando o sentido de virtualizar é perdido, conforme argumenta Antônio Banchi, um jovem cientista político. Banchik recupera o significado de “virtual” como o oposto do que é atual ou presente. O lugar legítimo do virtual, portanto, só pode ser descoberto se recuperarmos o lugar legítimo do real. Caso contrário, a virtualidade seguirá sendo compreendida não somente como o único espaço de produção, mas o único, também, da verdade. De tal maneira que, como dizíamos, a própria verdade fica impossibilitada.

Isto se deve à desconexão da virtualidade com sua outra face: a atualidade. Com isto, o que conjuga o que é contínuo e consistente vai perdendo lugar para o que é ultra-mediado e ultra-unilateral, sem direito ao contraditório, ainda que sob a aparência de imediato.

Muitas mediações e com pouco diálogo. Assim se dão as relações estabelecidas apenas em redes sociais, contrariando a perspectiva mais autêntica e verdadeira de democracia: participação (como ação direta) e diálogo (escuta, voz, debate).

Bolsonaro não foi eleito apenas pelas redes. Mas porque conjugou isto que Banchik bem recupera: a virtualidade com a atualidade, inserindo a verdade em um terreno de permanente questionamento. Bastando as redes, ele não faria uso de seu aparente extremo oposto: as intimidações físicas, as ameaças de morte. Contando, inclusive, com práticas concretas de assistência social de igrejas evangélicas, nas favelas,

Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, uma comunicação pautada pelo olhar favorece a quebra de respeito, pois dispensa a tatilidade, essencial para a comunicação humana no mundo real. Isso não se restringe à dimensão corporal, mas às múltiplas das camadas e dimensões da percepção humana.

O nome que um país dependente pode dar a esta pluralidade de dimensões é democracia. Algo que somente se experimenta na prática e na relação com as contradições. Uma tarefa que não se resume a um ato, que requer voto e tato.

Não foi o que Bolsonaro fez de virtual que atualizou Lula. Foi algo muito atual – desmatamento, miséria crescente, fome – que virtualizou Lula. Lula precisa ir para os braços do povo. Não no sentido de envolver o povo, mas no sentido leninista, de ser envolvido por ele. Quando Lula estiver disposto a lidar com as contradições do trabalho e não do capital, a fé depositada no herói se converterá em apoio concreto.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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