

Opinião
O STF e a defesa da democracia
Quando os “homens de bem” falam em liberdade, estão preparando a prisão e a tortura dos adversários


Em meio aos instantes finais do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da tentativa de golpe dos “democratas de passeata” é oportuno relembrar o golpe de 1964. O famigerado golpe de Estado inspirou um slogan premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Gordon era o embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Conspirava abertamente com as “forças democráticas” nativas, aquelas que permanentemente arquitetam a supressão da democracia.
Nos tempos de hoje, a conspiração assumiu contornos semelhantes, mas diferentes. Na passeata de 7 de Setembro, os “patriotas” carregaram uma enorme bandeira dos Estados Unidos. Como de hábito na Terra de Santa Cruz, a conspirata golpista envolveu os “homens de bem”, tal como os parlamentares do Centrão. Esses senhores, eleitos pelos ressentidos, patrocinam o Projeto de Lei da Anistia. Os representantes do povo envergam os propósitos golpistas para executar seus projetos pessoais à sombra da escuridão.
Assim como em 1964, a galera golpista novamente deita falação sobre democracia. É bom abrir o olho. Quando essa turma fala de liberdade, está preparando, na esteira de Brilhante Ustra, a prisão e a tortura dos adversários políticos.
Os trancos e barrancos da caterva bolsonarista suscitam suposições as mais divergentes, quando não disparatadas, a respeito dos verdadeiros propósitos – ou falta deles – do ex-ocupante da Presidência da República. Peço licença para juntar meus trapos a essa farandola de propósitos golpistas. Talvez seja injusto, ademais imprudente, separar os que pretextam loucura e os que imaginam uma estratégia. Louco ou estrategista? A leitura obsessiva de alguns autores irreverentes instigou minha resistência a oposições binárias. Isto ou aquilo? Prefiro a forma “isto e aquilo”. É a estratégia da loucura, o desvario que frequenta as cacholas de um certo tipo de gente que deambula nos espaços sociais.
No livro The Mass Psychology of Fascism, Willem Reich assegura que a mentalidade fascista é a mentalidade do “homenzinho”: escravizado, anseia por autoridade e, ao mesmo tempo, é rebelde. Não é coincidência que todos os ditadores fascistas tenham surgido no meio reacionário do homenzinho.
O magnata industrial e o senhor feudal exploram esse fenômeno social para seus propósitos, depois de terem evoluído em um quadro geral de supressão dos impulsos de vida. A civilização mecanicista e despótica colhe do homenzinho humilhado apenas o que semeou nas massas de seres humanos subjugados, ao longo dos séculos, lançando o desgraçado nos caminhos do misticismo, do militarismo e do automatismo.
Diria outro irreverente: “Eles não sabem, mas fazem”.
Para ilustrar os passos dos que caminham nas trevas da conspiração golpista, vou recordar o apólogo dos peixinhos que já apresentei nesta coluna. Em palestra aos estudantes do Kenyon College, o escritor americano David Foster Wallace começou sua exposição com um apólogo: “Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz: Bom dia, meninos. Como está a água? Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: ‘Água? Que diabo é isso?’” Wallace explica: “O ponto central da história dos peixes ensina que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida… Os pensamentos e os sentimentos dos outros precisam achar um caminho para ser captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras ‘virtudes’. Esta não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração-padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser”.
A camada de homenzinhos, como os peixinhos mergulhados em seu egocentrismo, não consegue reconhecer o ambiente social em que vive. Por isso, exerce seus desejos, medos e anseios em aras de agressividade contra os demais. Bolsonaro não tem empatia, sua personalidade de homem humilhado e fracassado exige o confronto permanente com tudo e com todos. Com a cabeça no travesseiro ele sofre as dores do sentimento de inferioridade cevado nos baixios de sua ignorância.
Na pandemia da Covid, Bolsonaro negou, em vez de comandar ações efetivas para contrabalançar os danos sociais e econômicos. O ex-presidente homenzinho dedicou-se a pressionar pela abertura de fábricas, lojas e outras atividades, ignorando o risco de as mortes se avolumarem. Sua inumanidade se expressou na frase: “70% vão ser contaminados. Eles estão com medo”. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O STF e a defesa da democracia’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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