Valdete Souto Severo

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É Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.

Opinião

O silêncio do presidente 

Brasileiros e brasileiras puderam hoje sentir a dimensão da vergonha que o país está passando lá fora

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O presidente Jair Bolsonaro professou um discurso distópico na sede da ONU, no dia de hoje. Enquanto uma política de eliminação de pessoas resulta a morte de crianças inocentes; nossas florestas queimam, nosso sistema de seguridade social é rifado, a pobreza e o desemprego aumentam, o sistema de educação é desmantelado e as denúncias de corrupção e prevaricação são ignoradas, o presidente sugere um dia em homenagem às vítimas de crimes religiosos. Silencia sobre as mulheres, alvo de violência, cujos números são assustadoramente crescentes. Silencia sobre a realidade da população negra, pobre e LGBTI, que vem sendo exterminada nas ruas das grandes cidades ou amarga a miséria de um país sem emprego, cuja economia nacional está sendo esfacelada. 

Enquanto o presidente convida o mundo a conhecer nosso país, para compreender que finalmente nos livramos do “socialismo” que impedia o crescimento econômico, e exalta a necessidade de permitir que latifundiários cultivem terras indígenas, silencia sobre a política de recrudescimento da violêncial policial, a censura às expressões de pensamento e o desmanche de direitos sociais. 

O discurso revela-se um amontoado de preconceitos vergonhosos.

Enquanto preocupa-se em salientar os problemas da Venezuela (essa eterna obsessão), esquece-se das milhares de mortes praticadas pela polícia no Brasil apenas este ano. Refere a corrupção generalizada, mas não enfrenta o problema das milícias e da cumplicidade que silencia e impede que mortes como a de Anderson e Marielle sejam apuradas. Nega a realidade das queimadas, acusando a mídia de “mentir” sobre algo que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) já revelou: apenas em setembro foram localizados 21.761 focos de queimada no bioma Amazônia

Enquanto Bolsonaro afirma, faltando com a verdade, o despreparo de médicos cubanos, silencia sobre a quantidade de unidades de saúde que estão sendo fechadas e que estão desatendidas pela falta desses profissionais.

Foto: Johannes EISELE / AFP

Enquanto anuncia o “novo” Brasil e exalta a atuação do Ministro Sérgio Moro, deliberadamente ignora as provas já trazidas a público, que revelam relações ilícitas e espúrias deste agente com procuradores do Ministério Público, até hoje não afastados, nem processados pelos crimes, cujas provas são robustas. 

Bolsonaro nega que a Amazônia seja importante para o mundo e vê a tentativa de proteção ambiental como ataque a nossa soberania, mas silencia sobre a privatização e a venda de empresas centrais para a manutenção de qualquer autonomia interna, assim como nada refere sobre a política de entreguismo, destruição da indústria nacional, retirada de poder de consumo e absoluta subserviência aos EUA, que tem sido a tônica de seu governo nesses poucos meses de tanto retrocesso. 

O presidente afirma que o Brasil é um país democrático, mas silencia sobre a prisão política da Lula, assim como nada refere sobre o golpe que afastou uma presidenta eleita e, aliado ao encarceramento ilegal do favorito para as eleições de 2018, viabilizou a instauração de um governo fascista em nosso país.

Ao contrário do que se pode pensar, não estamos diante dos desmandos de alguém despreparado. O discurso é articulado a partir de uma lógica claramente autoritária: atribui os problemas aos “inimigos” que elege e invoca uma solidariedade religiosa, chegando mesmo a citar passagem da Bíblia, completamente fora de contexto, para reforçar o discurso do “nós contra eles”. 

O Brasil que eu represento, diz o presidente, está renascendo. O que ele não diz é que renasce nas sombras de um obscurantismo assustador.

Pois saiba presidente, o Brasil pelo qual tantos de nós temos lutado diariamente, é um país “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” e cuja ordem econômica deve ser pautada pelos ditames da justiça social. É, portanto, o avesso do que se tem feito por aqui nos últimos meses. 

Esse discurso, repleto de um silêncio eloquente sobre o que realmente está ocorrendo em nosso país, nos convoca a seguir denunciando aos organismos internacionais a verdade de seu autoritarismo censor e violento. 

Saiba, presidente, que a luta que animou a geração que promoveu a abertura democrática e, com muita dor e tantas perdas, começou a construir uma realidade minimamente democrática, não será abafada por frases desconectadas, ligadas apenas por um desejo de negação da realidade, que nos põe de joelhos, envergonhados, diante da comunidade internacional.

O Brasil que queremos ver renascer é um país em que nossas Marielles, Kauês, Kauans, Jenifers e Ágathas não sejam exterminados. Ao contrário, tenham o direito de crescer, de lutar e de viver em um mundo melhor.

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