Mundo
O show de Trump não pode parar
O autoritarismo do século XXI é fantasmagórico, dissimulado e corrói as instituições gradualmente


Da realpolitik à spectacle-politik, Donald Trump inaugura uma nova era: a política do espetáculo. Ele incorpora a lógica dos reality shows às novas expressões do autoritarismo no século XXI. Quando ainda se tentava compreender as dinâmicas dos modernos estados de exceção, Trump deu um passo além: inseriu elementos tão originais quanto improváveis: a performance típica de programas que exploram disputas, confinamentos, traições, reviravoltas entre personagens, humilhações públicas, afetos de ódio e repulsa. Nada de tédio ou previsibilidade: o inesperado e o chocante são celebrados, desde que provoquem reação. O que importa é a impressão. O show não pode parar — o show de Trump.
Há pouco mais de uma década, universidades e espaços públicos de crítica especializada — cineastas, jornalistas, analistas, canais de YouTube, documentários — passaram a discutir as novas formas de autoritarismo em ascensão. Aos poucos, delineava-se uma cartilha para as autocracias que brotavam em diferentes pontos do planeta, tanto à direita quanto à esquerda. Outros métodos de corroer a democracia. Novas ameaças para antigos desejos de poder absoluto. A esse fenômeno foram dados vários nomes: “novos despotismos”, “poder desconstituinte”, “legalidade autoritária”, “autoritarismo líquido”.
Quase todas as análises recorrem à teoria do estado de exceção, especialmente à do jurista alemão Carl Schmitt (1888–1985), realista político e admirador do nazismo. Ele construiu um arcabouço teórico que subordinava Constituição e leis à vontade política. Em sua leitura, soberano não é o povo, mas quem decide sobre o estado de exceção. A soberania é o poder de instaurar o imprevisível: a política antecede e domina o Direito.
Ou seja: na lógica do estado de exceção, não é a Constituição que limita a política, mas a política que molda a Constituição conforme seus desejos, usando as leis apenas como verniz de legitimidade. Soberano é quem define as exceções, impondo sua visão particular de mundo.
Para que surja um estado de exceção, é preciso um eixo gravitacional capaz de mobilizar apoios: a equação amigo-inimigo. Ela é tanto a causa quanto a finalidade do estado de exceção: o inimigo comum.
Os estudos recentes retomaram essa teoria para analisar as autocracias contemporâneas. Três características se destacam no autoritarismo atual:
(i) fantasmagórico – não há uniformes, insígnias ou datas marcadas para sua emergência. Surge de modo difuso, difícil de identificar.
(ii) dissimulado – proclama-se democrático enquanto mina a própria democracia. As ditaduras do passado assumiam seu caráter; o autoritarismo de hoje usa a linguagem democrática como máscara.
(iii) fragmentado – não toma as instituições de assalto de uma vez; corrói-as gradualmente, em ataques intermitentes e circulares contra educação, cultura, liberdade de expressão, independência dos Poderes. Cada giro aperta mais o cerco.
O autoritarismo do século XXI é fantasmagórico, dissimulado e fragmentado. Esconde-se sob fantasias democráticas, produz pantomimas de representação popular, ataca a educação, fustiga a cultura, captura o Judiciário — sempre ancorado na luta contra inimigos, que podem ser estrangeiros ou nacionais, reais ou imaginários, únicos ou múltiplos. O essencial é que existam inimigos.
Trump acrescenta a esse quadro performances diárias, anúncios espetaculares e imprevisíveis, uma obsessão por decretar exceções e inventar inimigos. O cardápio inclui “tarifaços” incoerentes, ataques a universidades e museus, ameaças a soberanias estrangeiras, delírios grotescos como anexar o Canadá ou instalar um resort na Palestina.
O ritmo é incessante. Da reunião com Putin no Alasca ao encontro com Zelensky em Washington, passando por anúncios de novos encontros na mesma semana, é preciso alimentar a audiência. Entre um episódio e outro, factóides como o “fim de sete guerras” ocupam imprensa e redes sociais. Pouco importa a consistência: importa estar em pauta.
Em A Sociedade do Espetáculo (1967), Guy Debord refletiu que a vida social é dominada por imagens e aparências, e o espetáculo organiza a realidade em forma de passividade e contemplação. Também serve como instrumento de controle social: “A mais velha especialização social, a do poder, encontra-se na raiz do espetáculo”, escreveu.
A Casa Branca transformou-se, assim, no palco da espetacularização global do poder. De lá partem ofensas, ameaças, pantomimas egóicas e discursos de ódio, inclusive contra o Brasil, em razão da condenação de Jair Bolsonaro pelo STF. Nesse cenário grotesco, o autoritarismo adota a linguagem do espetáculo: a ansiedade se converte em combustível e o mundo, conectado em rede, aguarda diariamente (e várias vezes ao dia) o próximo episódio desse perverso show.
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