Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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O retrocesso Temer e o desastre Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição

O que se pode dizer em favor da reeleição é que se trata de um instituto ainda muito novo para dizer que não funciona

O retrocesso Temer e o desastre Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição
O retrocesso Temer e o desastre Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição
Foto: EVARISTO SA / AFP
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Maquiavel, com sua sabedoria política incomparável, afirmou que as repúblicas mal fundadas procuram, ao longo dos tempos, muitas vezes por séculos, encontrar um caminho mais adequado, mudando, a todo momento, suas leis e instituições. Em vez de encontrá-lo, elas se afundam no erro e no extravio. O Brasil, seja enquanto Estado independente, seja como república, foi muito mal fundado por razões que não cabe aqui alinhar. O País confirma a tese de Maquiavel: está preso por um cipoal interminável de leis e por um processo sem-fim de mudanças constitucionais, atolando-se cada vez mais em impasses.

O debate sobre a reeleição entra nessa lógica desastrosa. O raciocínio é mais ou menos este: “Se existe uma crise, se as coisas não estão funcionando bem, vamos trocar de camisa”. Os políticos não conseguem perceber que a solução não está na mudança inconsequente. Em muitos casos, a solução consiste em fazer as instituições existentes funcionarem. Claro que reformas estruturais são necessárias, principalmente aquelas que visam remover os perpétuos mecanismos da desigualdade e da privatização do poder e do orçamento. Mas, voltando a Maquiavel, ele observa que as repúblicas bem fundadas eram aquelas estáveis e perduráveis.

A história referenda essa tese: a Esparta de Licurgo, a república romana antiga, a própria lei mosaica da Bíblia, implantada e garantida pelo fio da espada, tinham ordenamentos perduráveis. Os Federalistas modernos, quando arquitetaram a Constituição norte-americana, tinham uma obsessão: criar instituições estáveis. Já os políticos e legisladores brasileiros inscreveram em suas testas e em seus corações o famoso dito de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Vamos mudar para que tudo fique como está”. Este é o triste espetáculo que oferecem para distrair o povo.

Até mesmo o pai da reeleição, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, se arrependeu de sua criatura e a vê como causa das crises. Em artigo publicado em 2020, faz autocrítica da mudança que bancou. Não apresenta nenhum argumento consistente para validar sua tese. O único argumento válido, neste caso, consistiria em comparar a incidência de crises antes e depois da reeleição. Parece evidente que o período pré-reeleição foi muito mais eivado de crises. No pós-reeleição, a grande crise foi o impeachment de Dilma, visto cada vez mais por analistas como um golpe. O retrocesso do governo Temer e o desastre do governo Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição.

No plano dos estados e municípios, não há fatos que corroborem a tese de que a reeleição é causa de crises. Estudos empíricos mostram que o fato de um prefeito concorrer à reeleição não lhe dá vantagem significativa para a sua vitória. No folclore da política brasileira, há até um exemplo contrário, do tempo em que não havia reeleição, uma suposta afirmação de Orestes Quércia, que teria dito: “Quebrei o Banespa, mas elegi o Fleury”.

Esse tipo de situação anula um dos principais argumentos contra a reeleição: o da vantagem do uso da máquina pública por aquele que concorre à reeleição. Se ele não concorresse, poderia usar a máquina pública para eleger o seu sucessor. Então, o problema não está na reeleição, e sim no abuso de poder que deve ser coibido por outros meios.

Em 2016, a taxa de reeleição de prefeitos foi de 46%. Em 2020, subiu para 63%. Esses números não são conclusivos para dizer que o candidato à reeleição tem vantagens ou desvantagens na disputa. As eleições municipais de 2020 ocorreram em meio à pandemia e sob a evidência do fracasso das teses antipolíticas que dominaram as eleições de 2018. O fator conjuntural pode ter favorecido a reeleição de prefeitos.

O que se pode dizer em favor da reeleição é que se trata de um instituto ainda muito novo para dizer que não funciona. Em segundo lugar, é que se trata de um instituto que estimula a responsabilidade e a boa governança dos políticos eleitos em primeiro mandato. Por fim, vale dizer que, se um prefeito, um governador ou um presidente fazem bons governos, a população tem o direito de se beneficiar dessa boa gestão com a continuidade da mesma. Acabar com a reeleição significaria privar um município, um estado ou o país desse benefício.

Nos países parlamentaristas, ­premiers bem avaliados ficam por muitos anos no poder. A conservadora Angela Merkel ficou 16 anos no comando da Alemanha. O socialista Felipe González governou a Espanha por 13 anos. As evidências indicam que a reeleição é mais positiva do que negativa. O instituto, contudo, pode ser aperfeiçoado. Proibir um político reeleito de vir a ser candidato novamente em eleições futuras, e não apenas nas eleições seguintes, pode favorecer a renovação de lideranças políticas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mudar para manter como está?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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