Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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O retrocesso de Tarcísio

São Paulo não pode permitir que o governador importe os métodos de ação da polícia fluminense

O retrocesso de Tarcísio
O retrocesso de Tarcísio
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Foto: Divulgação/Governo de São Paulo
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O assassinato do soldado Patrick Bastos Reis no Guarujá levou o comando da Segurança Pública de São Paulo a desencadear uma violenta operação policial que resultou em 16 mortes. A operação teve o respaldo do governador Tarcísio de Freitas.

Uma resposta ao assassinato se fazia necessária. Uma resposta eficiente e dentro da lei. Surgiram, contudo, denúncias de execuções e torturas. A maior parte dos especialistas em segurança pública criticou a operação. A imputação de ineficiência foi generalizada, seja pelo elevado número de mortos e pelo simples fato de o autor dos disparos contra o policial ter se entregado, seja pelo alto contingente de policiais envolvidos. A operação no Guarujá lembrou muito o que acontece no Rio de Janeiro: recorrentes ações policiais em favelas e morros com elevado número de mortos. No Rio, as denúncias de chacinas, de execuções cometidas pelas polícias, inclusive de inocentes, são corriqueiras.

O modelo de segurança pública e o ­modus operandi da Polícia Militar de São Paulo se diferenciam substancialmente do modelo fluminense. Não que aqui não ocorram casos de violência com um número significativo de mortos. Mas os casos são esporádicos e não emanavam do comando da Segurança Pública nem faziam parte da doutrina da PM. Por isso, o episódio da operação no Guarujá levanta a suspeita de que o governador e o atual comando da área queiram importar o modelo fluminense. Se ocorrer, representará um enorme retrocesso e a destruição de avanços significativos ocorridos na doutrina de segurança pública paulista e na doutrina de formação da Polícia Militar. Avanços conquistados nas últimas três décadas.

As escolas superiores da Polícia Militar de São Paulo – Academia do Barro Branco e CAES – têm aperfeiçoado, paulatina e processualmente, sua doutrina de formação e suas grades curriculares. As mudanças mais expressivas dizem respeito aos seguintes pontos: redução relativa da carga horária de formação em Direito e aumento das áreas de Ciências Sociais, Gestão e Tecnologia e introdução significativa da formação em Direitos Humanos. Essas mudanças, entre outras, permitiram dois avanços: maior compreensão dos oficiais acerca da natureza da sociedade e mais ênfase em gestão e inovação tecnológica como fatores contribuintes na eficiência da segurança pública.

Passou-se a compreender que a adoção de uma concepção de sociedade mais aberta e arejada e o uso das ferramentas de gestão e de tecnologia são mais eficazes na obtenção de bons resultados do que a repressão pura e simples. A par disso, as escolas superiores da PM buscaram maior interação com as universidades, notadamente as públicas, e com as organizações especializadas em segurança pública.

Outra concepção de fundo incorporada pela PM de São Paulo é a de que a segurança é uma política pública. Nesse sentido, trata-se de prestação de serviço à sociedade a partir de suas necessidades e aspirações. Ou seja, a segurança pública é um direito dos cidadãos. A partir dessa concepção, a polícia paulista sintetizou sua missão em quatro pontos: proteger as pessoas, fazer cumprir as leis, combater o crime e preservar a ordem pública. Os objetivos estratégicos são definidos com a finalidade de aperfeiçoar os serviços. Um desses objetivos consiste em ampliar a aproximação com a sociedade.

A partir dessas concepções gerais, o comando da PM incorporou de forma decisiva a ideia de dotar os policiais com as microcâmeras. Essa ideia parte do pressuposto de que a câmera incorporada ao policial em serviço fornece um duplo benefício: protege o cidadão e protege o bom policial. Oficiais chegam a dizer que somente maus policiais podem ser contra o uso da câmera. A adoção dessa ferramenta fez despencar o número de mortes por policiais em atividade. Trata-se de um dos avanços mais significativos de eficiência policial e respeito à sociedade. Foi exatamente esse avanço que o então candidato Tarcísio de Freitas atacou primeiro, durante a campanha. Como governador, recuou da ideia, pressionado pela sociedade e por oficiais da própria PM.

As concepções adotadas pela polícia e as mudanças incrementais viabilizadas ao longo do tempo certamente forneceram uma contribuição decisiva para a melhora dos indicadores de segurança pública do estado. O Atlas da Violência mostra que esses indicadores são os melhores do Brasil, particularmente no que diz respeito ao número de homicídios. Não resta dúvida de que há muito por fazer. O que a sociedade não pode aceitar é a interrupção desses avanços e a ameaça de retrocessos que emanam do atual governo estadual. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O retrocesso de Tarcísio’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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