

Opinião
O rei e sua corte
Pelé teve coadjuvantes à altura de sua ascensão e glória, no Santos e na Seleção Brasileira


Justas e merecidas as homenagens prestadas a Pelé. Poderiam ter sido maiores, não fosse a insensibilidade argentária de muitos dos seus colegas de profissão, ausentes e silentes. Aqui, faço o inverso. Lembro alguns daqueles que, como coadjuvantes, formaram na corte do Rei, criando o terreno fértil para a sua ascensão e glória.
Começo por Valdemar de Brito, de quem pouco se fala. Craque da bola, artilheiro, de um futebol lembrado por raras e pálidas fotografias, teve a iniciativa, como técnico do Bauru Atlético Clube, de levar para o Santos aquele garoto de 15 anos, conhecido como Dico. Sagacidade que ao menos não foi esquecida, posteriormente, no seu tempo de comentarista de futebol da Rádio Nacional de São Paulo, onde trabalhamos juntos. Era apresentado como “o craque do passado, comentarista do presente, descobridor de Pelé”.
Com 15 anos, o Dico que virou Pelé entrou num time fortíssimo, bicampeão paulista (1955/1956), destruidor da hegemonia do “trio de ferro” paulistano, formado por Corinthians, São Paulo e Palmeiras. Não custa lembrar a formação mais constante, na qual o garoto teria de abrir espaço: Manga, Hélvio e Ivan; Ramiro, Formiga e Zito; Alfredinho, Álvaro, Del Vecchio, Vasconcelos e Tite, com o técnico Lula no comando. Não era fácil.
Dentro, não saiu mais. A primeira porta abriu-se no feriado de 7 de setembro de 1956, em Santo André, num amistoso contra o Corinthians local. Estive lá, com meu irmão, levado por meu pai. A imagem na lembrança é turva. Um pequeno estádio e muita gente apinhada foi o que restou. Só mais tarde, ao ler coisas do futebol, soube que aquele jogo havia se tornado histórico. No segundo tempo da partida, o garoto entrou no lugar do artilheiro Del Vecchio e fez seu primeiro gol como profissional do Santos, na vitória por 7 a 1.
A carreira deslanchou, num time cada vez mais forte, realizando temporadas constantes ao redor do mundo, ganhando títulos. No ataque santista, uma nova parceria goleadora se formava, consagrada pela imprensa como o trio PPP, Pagão, Pelé e Pepe. O gênio de Pelé desabrochava ao lado da sutileza milimétrica dos dribles de Pagão e das arrancadas com finalizações bombásticas de Pepe.
A Seleção Brasileira seria o rumo natural de Pelé. E nela ele se tornaria rapidamente a estrela principal. Os novos coadjuvantes, em 1958, eram Gylmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá e Zagallo. No Santos, a corte do Rei tinha, além de Gylmar e Zito, Getúlio, Ismael, Mauro, Dalmo, Calvet, Lima, Dorval, Mengalvio, Pepe, Edu, Coutinho e suas tabelinhas com Pelé, além de tantos outros.
Valdemar de Brito o descobriu. Com Pepe e Pagão formou o trio PPP. Sem falar em Garrincha
Ao testemunhar aquele primeiro gol do Pelé, em Santo André, não poderia imaginar que alguns anos depois, como repórter esportivo, estaria acompanhando de perto o auge da carreira dele. A minha durou exatos dez anos, de 1962 a 1972. Suficientes para ser testemunha da história de muitas das cenas exibidas à exaustão pela tevê nos últimos dias. Nem todas são alegres. O excesso de jogos e a falta da rigidez necessária da arbitragem para coibir jogadas violentas, como ocorre atualmente, resultavam em ausências importantes e seguidas de Pelé. Como ao ter de deixar a Copa de 1962, no Chile, logo no segundo jogo. E não participar das finais da Copa Intercontinental, vencida pelo Santos contra o Milan, no Maracanã, em 1963.
Em 1966, com a mídia contando como favas contadas a conquista do tri na Inglaterra, deu tudo errado. A preparação no Brasil foi anárquica e a expectativa de vitória açulou todo tipo de interesses. A ponto de serem convocados mais de 40 jogadores na fase preparatória, fazendo treinamento e se concentrando em diferentes cidades brasileiras, tendo Pelé como principal atração. Na hora de selecionar os 22 que iriam para a Inglaterra, surgiu um estranho critério político-geográfico: dez jogadores do Rio, dez de São Paulo, um de Minas Gerais (Tostão) e um do Rio Grande do Sul (Alcindo). Não podia dar certo.
Pelé e Garrincha participaram da Seleção juntos pela última vez no jogo de estreia, na vitória contra a Bulgária por 2 a 0. Poupado na partida seguinte contra a Hungria, vi um Pelé cabisbaixo e preocupado, assistindo ao jogo perto de mim, numa bancada do estádio do Everton, em Liverpool. Voltou a jogar contra Portugal, para ser caçado e sair de campo derrotado, sem camisa, como mostra uma das fotos mais tristes de sua carreira. Não por acaso, na saída do gramado, o meu entrevistado foi Oto Glória, o técnico brasileiro vencedor da partida.
A derrota não esperada, como em 1950, serviu para que novos métodos e novos atores entrassem em cena para atuar com Pelé, já amplamente consagrado. E foi assim que Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Everaldo, Marco Antônio, Clodoaldo, Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e todos os demais daquela seleção passassem a integrar o enorme séquito que, ao longo dos anos, contribuiu para a consagração do Rei.
De minha parte, a última vez que vi Pelé de perto foi há muito tempo, num hotel de praia no Guarujá, onde me cumprimentou a certa distância, fazendo um V com os dedos. Sabia, com certeza, que ali estava também um dos seus súditos. •
*Foi repórter esportivo da Rádio Nacional de São Paulo e da TV Globo entre 1962 e 1972.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O rei e sua corte”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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