Renato Meirelles

Comunicólogo, presidente do Instituto Locomotiva e fundador do Data Favela, autor de 'Um País Chamado Favela' e 'Como Ser Uma Empresa Antirracista'

Opinião

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O recado das ruas para Lula

Boa parte da população quer um governo que apoie quem deseja empreender e evoluir

O recado das ruas para Lula
O recado das ruas para Lula
Lula discursa no Fórum Empresarial Brasil Japão em Tóquio. Declarações trouxeram novos recados do brasileiro a Donald Trump. Foto: Kazuhiro NOGI / AFP
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O presidente Lula tem um poder de comunicação tão forte quanto um enredo de Carnaval que levanta a Sapucaí. Ele é, sem dúvida, o melhor garoto-propaganda que o governo poderia ter. Sua trajetória, marcada pela superação de dificuldades, carrega uma energia simbólica capaz de conectar o Planalto às ­ruas. Mas, como temos percebido em pesquisas qualitativas no Instituto Locomotiva, a realidade nem sempre segue o script ideal.

No Campo Limpo, bairro da Zona Sul de São Paulo, encontramos famílias que refletem o sentimento de muitos brasileiros. Durante a pandemia, decidiram abrir um pequeno negócio, movimentando suas economias e suas esperanças. Deixaram clara a nova ambição do eleitorado: não basta sobreviver, é preciso crescer. Querem um governo que apoie quem deseja empreender e evoluir, não apenas distribuir benesses.

O mau humor que emerge hoje nas ­ruas não é uma sentença definitiva contra Lula, mas um sinal de alerta. Inflação persistente, emprego instável e a sensação de que a vida não anda como deveria geram uma cobrança por soluções mais robustas que o básico. Não há como confiar cegamente em programas sociais que, sozinhos, não resolvem a complexidade de desafios como educação de qualidade, crédito acessível ou infraestrutura para quem deseja crescer.

Se antes as políticas públicas eram vistas como generosas intervenções do Estado, agora o brasileiro entende que o essencial é direito adquirido. Ninguém agradece mais pelo mínimo. O foco está em oportunidades de progresso e dignidade real, o que exige crescimento econômico e respeito à autonomia individual. Reconectar-se com esse desejo popular é o grande teste para o atual governo. Os números falam por si: dois em cada três brasileiros valorizam o empreendedorismo como caminho real de crescimento pessoal e familiar. Isso inclui ter mais controle sobre a rotina, ficar mais próximo dos filhos, escapar da longa espera no transporte público e sonhar com uma vida melhor. O brasileiro vê em si mesmo a chave para avançar, fugindo do aperto da carteira assinada que, para muitos, já não garante a estabilidade de outrora.

Em vez de ser um problema, esse movimento pode ser a grande oportunidade do governo. Lula precisa retomar sua habilidade de traduzir assuntos complexos em linguagem simples e atrativa. Ele sabe vender sonhos e mobilizar pessoas em torno de um futuro promissor, mas essa capacidade não pode ficar restrita a debates desgastados. O Brasil pede um discurso mais fresco, que reflita a realidade atual de um povo exigente, crítico e pragmático.

As polarizações constantes geram cansaço e pouco contribuem para resolver o dia a dia do eleitor. Nossa pesquisa comparativa, alinhada com dados da Pew ­Research, mostra que, embora haja divergências políticas, o brasileiro não se divide tanto em questões como imigração, justiça social ou igualdade racial. O ponto sensível, na prática, está na valorização do trabalho e na crença de que o próprio esforço é o fator decisivo para a ascensão social.

Para que o governo recupere terreno, Lula deve voltar a ouvir quem está fora de sua bolha histórica. É hora de se aproximar de quem aposta no próprio suor e vê no empreendedorismo um instrumento de transformação de vida. Compreender esse anseio é fundamental para reverter o clima de frustração e retomar a narrativa de esperança.

Se o governo entender que o humor popular varia mais do que a cotação do dólar, perceberá que a reprovação atual não é irreversível. Falta demonstrar, com ações concretas, a preocupação efetiva em fazer o País avançar, não só manter a população respirando. O caminho até 2026 será tortuoso, mas menos complicado se Lula utilizar novamente seu talento natural para inspirar. É o momento de mostrar que, tal qual diz o verso do clássico O Que É, O Que É?, é preciso “viver e não ter a vergonha de ser feliz”, mas também ousar, empreender e colher os frutos de uma nação mais dinâmica.

Ser um bom garoto-propaganda não basta. É necessário entregar resultados que realmente toquem a vida de quem mais precisa. Esse é o verdadeiro desafio. Ficar no discurso raso pode até gerar aplausos imediatos, mas não garante consistência no longo prazo. A população busca não só empatia, mas políticas públicas que ajudem na construção de trajetórias sustentáveis.

No fim das contas, o que está em jogo é a reconexão genuína com o povo. E, para tanto, Lula deve voltar a exibir sua melhor característica: a habilidade de ouvir e falar na mesma sintonia do Brasil que se move. Se der atenção a essas novas vozes, o governo poderá, de fato, realizar o papel que muitos esperam dele: ser um catalisador de oportunidades, e não apenas um distribuidor de alívios temporários. Como cantava Gonzaguinha, é preciso aprender a sonhar sem perder o chão. •

Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O recado das ruas para Lula’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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