Maria Flor

Atriz, autora do livro 'Já não me sinto só'

Opinião

Reflexões sobre a morte

A morte não é mais uma descoberta, ela é a ordem do dia

(Foto: Divulgação)
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Quando eu tinha 7 anos, meu avô paterno me levava para passear no Palácio do Catete. Gostava de caminhar pelos jardins, ver os gansos e patos nos lagos, comer ­pipoca na saída. Um dia eu tive, sem ­muita­ ­explicação, interesse pelo palácio em si. Não era algo que me havia ocorrido antes. Preferia correr pelo imenso ­gramado e me esconder do meu avô em uma ­gruta, na lateral do prédio. Mas, naquele dia, me deparei com a entrada principal, as escadas, o tapete vermelho que as cobria, as estátuas que pareciam pássaros enormes com asas abertas. Pela primeira vez reconheci a existência daquele edifício.

Perguntei ao meu avô quem morava ali. Alguma princesa? Uma rainha? Ele me contou que os presidentes do Brasil tinham morado naquele endereço antes de existir outro lugar, construído mais tarde: Brasília. E nessa cidade os presidentes passaram a morar em outro palácio, o da Alvorada. Achei tudo muito estranho. Por que presidentes precisavam de palácios? Por que construir uma cidade inteira só para colocar presidentes?

Ele não soube responder, mas disse que podíamos entrar no Palácio do Catete, aberto para visitação. Achei bonito. As paredes e os tetos eram pintados com imagens de anjos, homens e mulheres, lustres dourados. O mobiliário original estava conservado e, entre um andar e outro, nos deparamos com um quarto. Nele, havia uma cama feita e um pijama. Achei especialmente esquisito haver um pijama em exposição. Então, meu avô me contou a história de Getúlio Vargas, presidente e ditador brasileiro que cometeu suicídio em 1954.

O suicídio não era novidade para mim. Meu próprio avô, por parte de mãe, tinha se matado quanto ela ainda era uma menina e eu tinha acabado de saber da história.

A carta de despedida deixada por Vargas estava emoldurada e podia ser lida. Minha capacidade de leitura era bem primária, mas meu avô me ajudou e chegamos ao final trágico. “Saio da vida para entrar na história”.

Fiquei intrigada e as perguntas ficaram intensas nas semanas seguintes. Por que ele tinha de se matar para entrar na história? Se a gente se matar, entra na história? Por que o pai da minha mãe se matou? Ele era presidente? Eu também posso ser? Se eu for, vou querer me matar? Alguma menina ocupou esse cargo?

Meu avô não entendia a obsessão com a morte e a ligação com o presidente. Arrependeu-se de ter contado a história de Vargas e me levado ao Catete, que virou o meu programa preferido. “Vamos vovô, eu quero ver o pijama do presidente que se matou.” Meus pais chegaram a pensar em me levar ao psicólogo, mas desistiram. A descoberta da existência da morte faz parte da vida.

Nessa época, o presidente do Brasil era Fernando Collor de Mello, e logo após saber da história de Vargas a poupança do meu avô foi congelada pelo governo. Diante dessa crise, perguntei: “Vovô, ele também vai se matar?” Collor não se matou, foi impichado e entrou para a história como o presidente que confiscou a poupança da população.

Meu avô morreu antes do início da pandemia, no Carnaval de 2020, antes de toda a tormenta começar. Estamos em 2021 e o presidente é Jair Messias Bolsonaro. O Brasil aproxima-se da marca de 500 mil mortes por Covid-19. A televisão anuncia o total de óbitos todas as noites, os jornais estampam os números pela manhã. A morte está mais presente do que nunca.

Meu enteado de 7 anos me disse outro dia que gostaria de se mudar para qualquer lugar onde não houvesse nem Covid nem o Bolsonaro. Ele não quer morrer nem ver o presidente deixar as pessoas morrerem. “Odeio ele”, esbravejou, sentado no chão da cozinha, enquanto eu esquentava o pão de queijo. Um dia, o pai atrasou-se para o almoço e eu me preocupei. “Bem-vinda ao meu mundo”, disse. “Agora você sabe como é estar sempre achando que as pessoas vão morrer.”

Fico triste por uma criança tão pequena estar com tanto medo da morte. Fico ainda mais triste por saber que essa é a realidade de muitas crianças, seja por terem perdido entes queridos para a Covid, seja por ver seus pais acompanharem com desespero os números diários de mortes no País. Ou ainda por viverem em comunidades onde a violência é regra e a ameaça de morte, constante.

A morte não é mais uma descoberta, ela é a ordem do dia. Se meu avô estivesse vivo e eu pudesse sentar ao seu lado na cadeira de balanço, gostaria de perguntar o porquê de tudo isso. Por que ele deixou as pessoas morrerem sem ar, sem vacinas, sem leito? Por que, vovô? E, talvez, ele responderia: “Ele negligencia a vida para entrar na história”.

Publicado na edição nº 1162 de CartaCapital, em 17 de junho de 2021.

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