Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O que São Paulo faz enquanto a lua cheia ilumina a cidade?

Daqui de cima, tudo é lindo, maravilhoso. Vai ver que tem gente nascendo, doente sofrendo, cabelo crescendo, gente morrendo

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Numa noite de lua cheia, subi na cobertura do vigésimo primeiro andar de um apartamento na Avenida Higienópolis para fotografá-la. Já não havia mais o que dizer sobre o luar. Fotos boas e fotos ruins já haviam tomado conta das redes sociais, como se fosse a lua de São Jorge, lua deslumbrante, a lua dos namorados, lua, lua lua, oh! lua tão cândida. Mesmo assim quis fotografá-la.

Não foquei nela porque lua nunca sai bem na foto de smartphone. Nunca sai bonita quanto ela é numa noite como esta. Preferi fotografar a cidade iluminada por ela, essa São Paulo que moro há quarenta anos. Estava comemorando naquela noite.

A fotografia ficou bonita, mas a lua mesmo, ofuscada pelas nuvens que cobriam a cidade, nem brilhava tanto. Mas parecia iluminar a cidade, outrora túmulo do samba, numa véspera de carnaval.

Tão bonita que logo me arvorei a trocar o fundo de tela no computador do meu escritório. Quando apago as luzes, São Paulo ilumina o ambiente como se estivesse permanentemente acordada. Nos intervalos do trabalho, minimizo todas as pastas e fico admirando essa selva de pedra, cada detalhe, cada luz acesa, cada lua apagada.

O que estariam fazendo os moradores dessa cidade maravilhosa no momento em que a flagrei naquela noite de lua cheia?

Devia ter gente chuleando a fantasia pra sair no bloquinho, aplicando as últimas miçangas no bustiê. Devia ter gente preparando um chá de hortelã com limão siciliano, gente vendo as cenas de violência na novela “Amor de Mãe”, preparando a marmita pro dia seguinte, arroz, feijão e macarrão. Devia ter gente lendo “O Romance da Minha Vida”, de Leonardo Padura, ou respondendo uma pesquisa de satisfação da TokStok.

Tudo poderia estar acontecendo nessa cidade. Poderia ter gente comendo um hambúrguer vegano, consertando o ferro elétrico que caiu no chão e não esquenta mais, lavando pratos e talheres do jantar, passando um pano com detergente no chão da cozinha que sujou de gordura.

Podia ter gente escovando os dentes, secando o cabelo, tomando banho, lavando as mãos com medo do coronavírus, fazendo contas, pagando boleto pelo celular, conferindo as compras do cartão de crédito, verificando quando vence a segunda parcela do IPVA.

Só vejo prédios com algumas luzes acesas, outras apagadas. Vai ver que tem gente esfregando roupa no tanque, lavando calcinha no box, alguém trocando uma lâmpada, recolhendo o cocô do cachorro na área de serviço, mordendo uma maçã, virando um omelete na frigideira.

Quem sabe tinha alguém escrevendo um livro, lendo um poema, planejando abrir um negócio, imprimindo currículo, pintando, tomando uma sopa de ervilhas, vidrado no Instagram, mandando uma mensagem pra mãe, quem sabe tinha alguém beijando, fazendo amor, discutindo a relação?

Pela fotografia não dá para identificar nada que a cidade está fazendo. Mas devia ter gente no palco interpretando uma peça que se passa em 1938 em que um grupo de 25 presidiários que fazia greve de fome foi punido com o cárcere em uma cela fechada com vapor aquecido. Gente assistindo Parasita, Coringa, 1917 ou Democracia em Vertigem, quem sabe?

Não dá pra ver, mas vai ver que tinha gente colocando o celular pra carregar, uma diarista respondendo a mensagem da patroa, bebê chorando não querendo ficar no berço, um outro bebê mamando no peito da mãe, um bebê nascendo.

Quem sabe não tinha gente trocando o coração, recebendo sangue novo, tomando uma injeção, fazendo inalação, gente respirando fundo pra tirar uma chapa do pulmão?

Pode ser que tinha gente regando as plantas na varanda, recolhendo a roupa no varal, abrindo o janelão, rasgando um envelope, abrindo um pacote da Amazon, arrumando a mala para amanhã pegar o avião. Vai ver que tinha gente assaltando, fugindo da polícia, policia matando.

Daqui de cima, tudo é lindo, maravilhoso. A gente nem imagina que tinha gente rezando, cortando as unhas do gato, ouvindo rádio, guardando as compras do supermercado, repassando a palestra de amanhã, olhando na despensa se ainda tinha feijão.

Vai ver que tem gente amassando mamão, batendo suco verde no liquidificador, batendo um prego pra segurar a parede do barracão. Vai ver que tem gente rasgando papel, varrendo o chão, gente jogada num sofá de exaustão. Vai ver que tem gente nascendo, doente sofrendo, cabelo crescendo, gente morrendo.

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