Patricia era controladora, bedel de escola. Kevin era um garoto que sofreu abusos na infância. Hedwig, uma criança sem noção de nove anos. Em Fragmentado, do cineasta M. Night Shyamalan, o personagem interpretado por James McAvoy sofre transtorno dissociativo de personalidade. São 23 ao todo, em uma luta entre a luz e a escuridão para manter enjaulada uma 24ª, a “Besta”, criatura de força descomunal confinada no âmago do confuso Kevin Wendell Crumb.
Fragmentado, um dos mais bizarros filmes dos últimos anos – a interpretação de McAvoy, principalmente de Hedwig, provoca vergonha alheia – me veio à mente ao saber que Jair Bolsonaro usou três pseudônimos para esconder sua identidade durante os testes de coronavírus. As múltiplas personas do ex-capitão se chamavam Airton Guedes, Rafael Augusto Alves da Costa Ferraz e O5, simples assim, sem delongas. Segundo informou o Supremo Tribunal Federal, por ordem do ministro Ricardo Lewandowski, os exames deram negativo. Bolsonaro e suas personalidades podem dormir tranquilos, se o fantasma de Moro permitir.
Como não sou adepto de modo geral de teorias da conspiração, não vou especular sobre o desfecho da epopeia. Há quem duvide da validade dos exames ou se eles pertencem mesmo a quem os apresentou. Eu não. Prefiro, até prova em contrário, acreditar nos fatos apresentados. O que me intriga é a relutância de Bolsonaro em apresentar provas de que falava a verdade. E não me convence o argumento de que havia no gesto uma defesa intransigente de seus direitos individuais.
Entrar em uma queda-de-braço com o jornal O Estado de S. Paulo, instância por instância, até o STF, parece mais uma encenação para distrair a plateia dos problemas reais. Uma oportunidade para repisar a tese da perseguição da mídia e reforçar a imagem de homem de palavra. No dia em que o noticiário ainda reverberava intensamente o conteúdo do vídeo da reunião na qual Bolsonaro teria deixado claro que a interferência na Polícia Federal visava proteger a família, o teste negativo para a Covid-19 proporcionou um pequeno alento, um joinha no Twitter, e um assunto para manter unificada a tropa, a boiada, diriam alguns, de apoiadores.
Meus pensamentos imperfeitos – e minhas vastas emoções – se concentraram, porém, em outro ponto, mais freudiano. Teriam os heterônimos de Bolsonaro (perdão, Fernando Pessoa) vida própria como os “roommates” de Kevin Crumb? Como seriam? Comecemos pelo mais fácil, o 05. Ele seria uma versão ainda mais púbere do 04, o filho garanhão que pegou metade do condomínio. Um aprendiz de Jair Renan, anda de jet ski com rodinhas e não perde uma rodada de pera, uva ou maçã nas redondezas. Até hoje deu azar: no máximo rolou uma uva. Mas seu dia iria chegar.
O Rafael talvez seja uma projeção do ministro Nelson Teich. Deslocado, desinformado, toma bola nas costas, só abre a boca para emitir frases irrelevantes, mas fecha com o capitão. Se ele disse, tá dito, se decidiu, foi por razões superiores. Nem lockdown, nem flexibilização. Cloroquina? Com limão desce melhor.
O Airton, meus caros, ah, esse rapaz preocupa. Tem pinta de insubordinado, traidor. Um Mandetta, um Bebbiano, um, será possível?, Moro. Não se pode confiar. É esquivo, só pensa nele, não quer o melhor para o Brasil, não pensa no povo. Nem sei dizer como o exame dele não deu positivo, só para contrariar. Mas se ele não obedecer, eu troco, troco o diretor, troco o ministro, o que não pode é prejudicar os meus filhos. Muito cuidado, alerta total, talkey?
Quanto à Besta deste filme, a gente sabe quem é.
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