Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

O que o caso Hytalo expõe é mais profundo

É preciso punir plataformas, estruturar conselhos tutelares, responsabilizar adultos e enfrentar o desconforto de olhar para a sociedade que produz e consome esse espetáculo

O que o caso Hytalo expõe é mais profundo
O que o caso Hytalo expõe é mais profundo
O influenciador Hytalo Santos foi preso suspeito de exploração e exposição de menores de idade em conteúdos produzidos para as redes sociais. Créditos: Reprodução
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Mais do que a queda de um influenciador, o caso Hytalo revelou a face mais incômoda de nossa sociedade: a naturalização da exploração infantil diante das câmeras e a fragilidade de um Estado que só se move quando a vergonha se torna pública.

A prisão do youtuber acusado de oferecer mesadas a famílias em troca da convivência com adolescentes não encerra apenas uma investigação tardia. Também expõe uma engrenagem em que pais, plataformas, patrocinadores, conselhos tutelares e Ministério Público se omitiram — ou lucraram — diante do que agora chamamos, sem eufemismos, de exploração da infância.

O estopim foi um vídeo de Felca, que viralizou no início de agosto. Mas nada do que ele mostrou era inédito. Durante anos, as gravações estiveram ali, visíveis, monetizadas, transformadas em entretenimento para milhões de jovens. Famílias aceitaram pagamentos de dois a três mil reais mensais para entregar seus filhos ao esquema. Conselhos tutelares dizem não ter recebido denúncias formais; o Ministério Público investigava em ritmo arrastado. Só quando a indignação viralizou a máquina estatal se mexeu.

Esse atraso revela um paradoxo: o Brasil dispõe de um Estatuto da Criança e do Adolescente, de um artigo constitucional que coloca a proteção da infância como prioridade absoluta, e de uma legislação abundante. Mas, na prática, tais instrumentos só deixam o papel quando a pressão coletiva se torna insuportável. Até lá, vigora o silêncio.

E silêncio, aqui, não é neutralidade — é conivência. Ele sustenta um processo de adultização que atravessa décadas. Nos anos 1990, meninas eram expostas em programas de auditório. Hoje, adolescentes aparecem em coreografias sexualizadas no TikTok. A lógica permanece: desejo adulto convertido em espetáculo, espetáculo transformado em lucro.

A omissão familiar agrava o cenário. Não se trata apenas de falhar na proteção, mas de se tornar sócio do problema. Aceitar dinheiro em troca da exposição dos filhos não é ingenuidade: é cumplicidade. Do outro lado da tela, milhões de pais e mães assistem sem questionar o que seus próprios filhos consomem.

As instituições também falharam. Conselhos tutelares relatam a ausência de denúncias; o Ministério Público, mesmo ciente, não agiu a tempo. Mas como esperar que famílias denunciem quando parte delas lucrava com o arranjo? O resultado é uma teia de omissões que só se rompe quando a pressão das redes sociais explode.

O episódio não é isolado. MC Melody, transformada em produto pelo próprio pai, continua sem responsabilização efetiva. A diferença é que agora a exploração se dá dentro de casa, transmitida em tempo real, impulsionada por algoritmos que premiam engajamento. O problema não diminuiu — apenas se sofisticou.

Outros países mostram caminhos. A França exige autorização judicial para monetizar perfis de menores. A União Europeia pune plataformas que não removem conteúdos ilegais. No Brasil, seguimos improvisando: cada escândalo gera um pacote legislativo emergencial, como a chamada “Lei Felca”. Mas leis sem fiscalização se tornam apenas novos ornamentos.

O que o caso Hytalo expõe é mais profundo: não é a falta de normas, mas a banalização da exploração. Transformamos crianças em carreiras, em curtidas, em cifras. E aceitamos isso até que a denúncia se torne inevitável.

Se há saída, ela passa pelo reconhecimento dessa responsabilidade compartilhada. É preciso punir plataformas, estruturar conselhos tutelares, responsabilizar adultos e enfrentar o desconforto de olhar para a sociedade que produz e consome esse espetáculo. Porque, no fim, o caso Hytalo não fala apenas de um influenciador: fala do Brasil inteiro.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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