

Opinião
O que Lima Barreto pode ensinar ao Brasil de hoje
Autor será homenageado pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta


Por Denilson Botelho
Em sua 15ª edição, pela primeira vez a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) homenageia em 2017 um escritor negro. A escolha de Lima Barreto é muito significativa para um país que se debate de forma conflituosa com a herança secular da escravidão. A polêmica sobre a relevância e a pertinência da adoção de cotas, entre outras ações afirmativas, é um indicador do quanto o racismo continua fazendo vítimas entre nós. Por isso, a homenagem ao escritor cumpre uma indiscutível função pedagógica.
Lima Barreto (1881-1922) viveu numa época de transições. No seu aniversário de sete anos, viu a abolição ser festejada em praça pública na companhia do pai, registrando as lembranças do episódio em seu Diário íntimo. No ano seguinte, em 1889, viu a monarquia dar lugar à república. E passou a juventude e o resto de sua curta existência – faleceu aos 41 anos – enfrentando os desafios de ser negro num país que aboliu a escravidão, mas não fez com que a liberdade viesse acompanhada dos direitos de cidadania pelos quais temos lutado desde então. Da mesma forma, vivenciou também os desafios de uma república que se fez excludente, frustrando a expectativa por um regime democrático.
Não bastassem as adversidades enfrentadas por qualquer homem negro no pós-abolição, Lima Barreto se fez escritor e sua extensa e diversificada obra constituiu-se em precioso testemunho daquele tempo para as gerações seguintes. Quem quiser compreender o que foi o Brasil nas suas primeiras décadas republicanas, terá que percorrer obrigatoriamente a literatura produzida por esse autor, que olhava para o país a partir de um ponto de observação singular: os subúrbios, a periferia e os bares frequentados pelas camadas populares. Ou a partir de sua casa suburbana que, de modo sarcástico, apelidou de “Vila Quilombo” – para implicar com Copacabana e as elites.
Mas por que devemos ler Lima Barreto hoje? São vários os motivos, mas um deles revela-se da maior importância. Nos últimos anos, os grandes grupos empresariais de mídia têm contribuído decisivamente para demonizar a política. A pregação de um discurso anticorrupção tem se revestido de um moralismo sem precedentes e, ao mesmo tempo, esterilizante. Muitos são aqueles que têm sido levados a recusar o debate político sob o argumento tolo, generalizante e perigoso que sugere que todo político é ladrão e corrupto. A estratégia abre espaço para a figura enganosa do “gestor”, que, fingindo renegar a política, governa para contemplar os interesses de poucos em detrimento da maioria.
O fato é que encontramos em Lima Barreto um vigoroso antídoto para lidar com essa situação, pois estamos diante de um escritor que fez da literatura a arte do engajamento. Escrever era para ele uma forma efetiva de participar dos acontecimentos. Os mais de 500 artigos e crônicas que publicou em dezenas de jornais e revistas do Rio de Janeiro – assim como seus romances e contos – não deixavam escapar nenhum tema importante em discussão na época. Lima não se esquivava do debate e muito menos de opinar e apresentar enfaticamente os seus pontos de vistas, geralmente urdidos com base nas leituras que fazia quase obsessivamente. Em síntese, escrever era fazer política, era participar da vida política do país e isso resultou numa literatura militante, que nos leva a perceber a centralidade da política em nossas vidas.
Ao mesmo tempo, já na sua estreia como romancista, ao publicar Recordações do escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima Barreto instigava o senso crítico de seus leitores em relação aos métodos e procedimentos do jornalismo, fazendo do romance uma denúncia contra a imprensa, aquele “engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões”.
O autor homenageado pela FLIP em 2017 tem, portanto, muito a nos ensinar sobre a importância de reconhecer a política como instrumento indispensável para a obra – que continua em curso – desafiadora de construção de uma república democrática. Inclusive sobre os desafios forjados por uma imprensa mais comprometida com a “estupidez das multidões” do que com a cidadania que tanto almejamos.
Denilson Botelho, historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo. Autor de A pátria que quisera ter era um mito: história, literatura e política em Lima Barreto (Editora Prismas, 2017)
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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