Opinião

O que Hitler não conseguiu, Trump realiza

Segundo a imprensa ocidental, o chamado “eixo do mal” seria formado por Rússia, Coreia do Norte e China. Mas a realidade aponta noutra direção

O que Hitler não conseguiu, Trump realiza
O que Hitler não conseguiu, Trump realiza
O presidente Donald Trump, dos Estados Unidos. Foto: SAUL LOEB / AFP
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“Estamos vivendo num mundo onde somos obrigados a mergulhar profundamente na terra para sermos capazes de recriar mundos possíveis. Acontece que, nas narrativas de mundo onde só o humano age, essa centralidade silencia todas as outras presenças. Querem silenciar inclusive os encantados, reduzir a uma mímica isso que seria ‘espiritar’, suprimir a experiência do corpo em comunhão com a folha, com o líquen e com a água, com o vento e com o fogo, com tudo que ativa nossa potência transcendente e que suplanta a mediocridade a que o humano se tem reduzido.”
Ailton Krenak

Mais uma vez, a América Latina e o Caribe se tornam alvos do arbítrio do desgoverno de extrema-direita dos Estados Unidos.

Novamente, um barco venezuelano foi atingido pelas forças estadunidenses, sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, sem investigação ou julgamento. Na realidade, trata-se de provocação para justificar a invasão do país e o saque das imensas riquezas minerais da Venezuela.

Essa escalada se torna ainda mais urgente para o atual governo republicano, que coleciona fracassos tanto no plano internacional quanto no doméstico: aumento do desemprego e da inflação, queda da produção agrícola e das exportações, em grande parte devido à deportação de trabalhadores imigrantes das lavouras e às tarifas sobre importações, que provocaram retaliações e retração econômica.

O quadro se agravou com a recente prisão de 300 trabalhadores imigrantes na fábrica da Hyundai nos EUA, fato que levou a empresa a reavaliar investimentos da ordem de 26 bilhões de dólares — em parceria com a sul-coreana LG. O constrangimento se ampliou pelo timing: a operação ocorreu dias após Donald Trump receber o presidente da Coreia do Sul na Casa Branca, um gesto que soou como desprezo ao visitante e ao país. Enquanto isso, o líder da Coreia do Norte era recebido com todas as honras em Pequim, expondo o contraste entre as alianças.

Quanto ao suposto tráfico de drogas, causa estranhamento o desconhecimento do secretário de Estado Marco Rubio sobre o tema, já que seu cunhado foi condenado por chefiar o narcotráfico na Flórida — período em que Rubio convivia com ele na mesma casa.

Rubio, no entanto, não é personagem secundário. Na semana passada, um parlamentar republicano apresentou projeto de lei que permitiria ao secretário cancelar passaportes de cidadãos estadunidenses que criticassem Israel. O fascismo, portanto, deixou de ser ameaça difusa: tornou-se realidade concreta também para os cidadãos dos EUA.

Os riscos só se acumulam. Por falta de fundos, a agência reguladora de segurança alimentar deixará de investigar a contaminação em seis das oito categorias de alimentos, expondo milhões de pessoas. Esse alinhamento ideológico ecoa em outros lugares: em Porto Alegre, vereadores de extrema-direita propuseram impedir a divulgação do nome de estabelecimentos autuados pela Vigilância Sanitária. A medida surgiu após a constatação de fezes de rato na cozinha de um restaurante bolsonarista — fato omitido pela imprensa local, mas logo conhecido por todos.

Na Fox News, o radicalismo foi ainda mais longe: um comentarista defendeu o extermínio da população de rua com transtornos mentais, tal como fizeram os nazistas em sua política de “higienização social”. A propaganda, nos moldes nazistas, não cessa.

Segundo a imprensa ocidental, o chamado “eixo do mal” seria formado por Rússia, Coreia do Norte e China, países apresentados como comunistas, ditatoriais, “comedores de criancinhas”. Mas a realidade aponta noutra direção: quem mata crianças todos os dias, em número superior a 30 mil apenas na Palestina, são Israel e EUA.

Por falar em nazismo, o ministro Luiz Fux, em parecer sobre a conspirata, citou Karl Engisch, jurista do Terceiro Reich. A referência, vinda de um ministro judeu, soou como contradição máxima — ainda que em sintonia com o teor esdrúxulo do próprio parecer.

A extrema-direita não cria: copia, adapta. Não pode inovar, pois o ato de assumir o desconhecimento nos renova e nos obriga a recomeçar — justamente o que uma ideologia de morte, rígida e apodrecida, rejeita. No campo externo, repete o padrão colonial de relação, mesmo em meio à decadência cultural, moral e material que assola não apenas os EUA, mas também a Europa Ocidental, reduzida a colônia pelas próprias oligarquias.

O que Hitler não conseguiu, Trump realiza.

Em Futuro Ancestral (Companhia das Letras), Ailton Krenak propõe outro caminho:

“O primeiro presente que ganhei com essa liberdade foi o de me confundir com a natureza num sentido amplo, de me entender como uma extensão de tudo, e ter essa experiência do sujeito coletivo. Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar… Essa potência de se perceber pertencendo a um todo e podendo modificar o mundo poderia ser uma boa ideia de educação.”

Talvez uma educação que parta do desconhecimento seja, paradoxalmente, o caminho mais seguro para o conhecimento.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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