Diversidade

O que é isso, companheira?

A menção às pessoas negras somente na imagética da subjugação escravocrata parece negligenciar a sua presença na força de trabalho contempor

Gravura de Jean-Baptiste Debret
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Causou espécie nas redes sociais a capa da edição especial de CartaCapital, cujo título, “A casa-grande faz a festa”, é acompanhado de uma gravura de Jean-Baptiste Debret, em que se dar a ver o cotidiano do Brasil escravocrata.

A aprovação da Reforma Trabalhista e a condenação inédita de um ex-presidente por corrupção foram o mote que impulsionaram a produção da capa, sem dúvida dois acontecimentos trágicos com repercussão sísmica no tecido social.

A “deforma trabalhista” institui, de um modo acentuadamente perverso, novas regras que irão afetar drasticamente o trabalhador brasileiro.

Parte significativa do pacote de maldades está abrigada no princípio da autonomia da vontade, o que pressupõe que empregados e empregadores estão em posição isonômica, com condições iguais de barganha, negociação e informação.

No rol de crueldades, cabem alterações que nos instalam a todos em situação de absoluta vulnerabilidade do mercado de trabalho.

O cenário de terra arrasada desenhado pela Reforma nos redireciona para um passado longínquo onde inexistia regulação trabalhista com parâmetros humanizantes. Para os analistas de plantão, qual seria, então, o problema em se associar as novas regras da legislação trabalhista à escravidão, já que o desmonte da CLT subscreve as cláusulas de um capitalismo voraz, ombreando, assim, a vida do trabalhador contemporâneo à vida do escravizado?

O próprio editorial de CartaCapital reconhece que o Brasil, último país a abolir a escravidão, em 1888, protelou o quanto pôde a regulação entre o capital e o trabalho livre. A Constituição República de 1891 sequer tomou conhecimento do assunto, o que só foi aventado com a reforma constitucional de 1926, para, enfim, ganhar amplitude jurídica na era Vargas.

Voltamos a insistir: onde reside o problema da capa de CartaCapital? Por que mobilizou tanta reação negativa de homens e mulheres negros? Por que fracassou na sua tentativa de diagnosticar o momento presente?

Reminiscências do passado, ausências no presente

São várias as questões-problema que esta capa suscita e todas bebem do mesmo poço. Fiquemos com dois aspectos: o reconhecimento da população negra como reminiscência de um passado fossilizado e a desconsideração solene de que o negro continua sendo a escória do Brasil e do mundo.

Constata-se que a menção às pessoas negras somente na imagética da subjugação escravocrata parece negligenciar a sua presença na força de trabalho contemporânea e seu protagonismo nas discussões e práticas voltadas para um novo pacto civilizatório desde a época da chibata e do lombo, expressões utilizadas pelo diretor de redação de CartaCapital, o jornalista Mino Carta.

Adicionalmente, o editorial justifica a suposta apatia da população frente à condenação de Lula pela chave de uma cultura na qual nos resignamos em “levar no lombo”. Mas quem levou no lombo neste País sempre se insurgiu, guerreou como pôde, resistiu….

O pensador e ativista do movimento negro Edson Cardoso escreveu no site Brado Nego o artigo “A marca indelével”, no qual também tece críticas à referida capa da revista.

Nele, Cardoso reitera que não fomos apenas os que aceitaram passivamente o jugo senhorial, mas reinventamos a nossa existência, sempre reivindicando acesso a uma soberania negada.

Tal desconsideração não se fez e faz sem terríveis consequências que retroalimentam o racismo: em meio à diversidade de análises que vêm sendo tecidas pela Academia, por um ativismo político de esquerda e até mesmo pelo jornalismo no que diz respeito à tragédia do neoliberalismo, aos efeitos nefastos da desigualdade e à persistência dos quadros exorbitantes de exclusão, o que é visceral à compreensão desse estado de coisas – a proeminência do racismo em todas as formas de subjugação e destituição – é atravessado, habitualmente, como cortina de fumaça.

Quando um pouco mais de atenção é dada à dimensão racial, é como epifenômeno, derivada do capitalismo, como um mero apêndice das questões macroestruturais, como delas não fossem constitutivas, que o tema vem à superfície.

Reiterar a dimensão racial apenas sob um prisma abreviado do que foi e do que está sendo a jornada do negro no Brasil e no mundo é pactuar com um imaginário que encarcera a população negra em prisões de imagens, para utilizar expressão de Alice Walker.

O pensador camaronês Achilie Mbembe, em “Crítica da razão negra” fala de uma condição negra universal, levando em conta que os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos constituem agora a quase norma das humanidades subalternas.

Para ele, por ter sido “na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria – a cripta viva do capital”, o conceito de negro e homem-mercadoria devem se prestar à compreensão do avanço neoliberal.

Ao contrário do que pode parecer, a afirmação de Mbembe não reafirma o postulado da capa de CartaCapital. O autor opera uma inversão lógica nas análises correntes: ao converter o negro como paradigma de uma humanidade subalterna, insere a questão racial negra no epicentro da dinâmica do capital, assinalando que o racismo é constitutivo de todas as etapas de exploração capitalista.

Mas Mbembe diz mais: “numa reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até de viver em vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo”.

Eis aí uma das raízes do rechaço à capa. Ausente de uma narrativa jornalística que capte essa sua força pujante, o seu pleno engajamento em todas as esferas da vida, o negro aporta na revista pela via insistente de imagens, como a gravura de Debret, que resvalam em estereótipo.

Caso tivéssemos a presença da gente negra nas discussões contemporâneas sobre política econômica, nos debates que se levantam para formular propostas em torno de projeto de nação, nas narrativas jornalísticas sobre relações internacionais, provavelmente esta capa poderia ser apenas mais uma referência extraída da extensa palheta do ser negro, ontem e hoje.

Já foi dito que o “jornalismo é fato de língua que organiza as hierarquias sociais”, o que nos permite dizer que a insistência em certas imagens de grupos historicamente discriminados, até mesmo pela imprensa dita de esquerda, preserva os lugares sociais delimitados pela linha de cor.

Esta linha, como se sabe, autoriza a quem tem o patrimônio da cor o exercício da fala pública sobre os destinos da coletividade e aos que não o têm concede apenas a possibilidade de servirem de triste alegoria para a ilustração do processo de destituição que os primeiros, os herdeiros do patrimônio da cor, poderão sofrer com a nova legislação trabalhista.

O levante nos espaços digitais (fundamentalmente, as redes sociais) e materiais foi um recado mais que dado para a revista, advertindo-a que o tempo da inocência já se foi.. e foi tarde. O que é isso, companheira?

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