Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O que andam falando por aí: cacos de histórias que dão asas à imaginação

Ouvir conversa alheia é colecionar tipos inesquecíveis, tentar entender o dia a dia de cada um, decifrar enigmas, calcular

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Millôr Fernandes tinha umas sacadas geniais. Fazia retratos 3×4 de amigos 6×9, escrevia fábulas fabulosas, acreditava que livre pensar é só pensar, sem contar os seus haikais do tipo “na poça da rua/o cão/lambe a lua”. Adorava as piadas que ele só contava o final, deixando o começo da blague para a imaginação de cada um.

Aí ele disse: mas aqui português é só um!

Então o papagaio falou: ele é pato, não é marreco!

E o gago se jogou debaixo do carro gritando: não fui fui eu! não fui fui eu!

Nos últimos tempos, eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome, assim tipo Adriana Calcanhoto. Eu ando pelo mundo divertindo gente, chorando ao telefone e vendo doer a fome nos meninos que têm fome.

Circulo de orelha em pé no ônibus, no metrô, no Uber, nas calçadas esburacadas de São Paulo, nas filas, nos parques, nas praças, sentado nos bancos verdes dos laboratórios de análises clínicas.

Por onde eu vou, sempre ouço alguma coisa, nem que seja apenas uma frase solta no ar.

Aí eu pensei comigo e falei pra ele: de jeito nenhum!

Cheguei da igreja e cai na cama!

Se eu ligar pra ex dele vai ser pra brigar!

Eu falei: burro é você que não sabe ensinar o seu filho!

Foi assim que, nos últimos dias, bloquinho na mão, comecei a anotar fragmentos de conversas no celular, papo de ponto de ônibus, andando lado a lado, dentro do elevador, no vagão do metrô.

São cacos de histórias que me dão asas à imaginação.

Eu pedi pro meu marido trazer pão, ele chegou tarde, onze horas, e esqueceu o pão, acredita? Aí fazer o quê? Eu tive que ir pra cozinha fazer um bolo pra trazer de lanche.

O Hugo trabalha nesse sacolão de Perdizes, repondo frutas.

Ele tá gostando?

Tá, mas você sabe, o negócio dele é a polícia. Enquanto não passar num concurso pra polícia ele não sossega.

O Lucas nasceu com um quilo cento e cinquenta. Fui pro hospital ter um bebê e levei pra casa um ratinho.

Se tiver só arroz ela come, se tiver só feijão ela come, se tiver só farinha ela come. E não reclama.

Estou com muita dor na coluna, mas estou chegando. Vou trabalhar mais devagarinho hoje.

Operei dia 9 de julho, no Hospital 9 de Julho. A cirurgia estava marcada para as sete horas e começou sabe que horas? Nove horas!

O meu menino passou o domingo inteirinho deitado na cama tac tac tac no celular.

Eu ontem fui dormir tarde porque fiquei assistindo até de madrugada uma série, não me lembro o nome. É sobre sereias.

No meu serviço tem dois funcionários que chegaram da Tailândia e estão proibidos de ir trabalhar.

O silicone no Hospital São Paulo é 7 mil e 800, no Hospital San Peter, 9 mil e 900.

As conversas que ouço são assim, curtas e passageiras. Nunca sei o começo e o fim, mas algumas se esgotam por si.

Ele disse que ia jogar sinuca e ela disse que ia com ele. Só vendo a cara que fez. Desistiu de ir. Falei pra ela: aí tem!

No restaurante onde almoço todos os dias, ao lado da Santa Casa de Misericórdia, divido as mesas no jardim com médicos, enfermeiras e anestesistas.

Quando aplico essa injeção eu sinto a agulha batendo no osso.

Ouvir conversa alheia é colecionar tipos inesquecíveis, tentar entender o dia a dia de cada um, decifrar enigmas, calcular, conhecer um pedacinho do Brasil, montar um quebra cabeça, sonhar, juntar matéria prima para uma crônica, acelerar a criatividade.

Esse fim de semana fui lá ajudar ela porque, coitada, perdeu quase tudo nessa chuvarada.

Quando já estava no último parágrafo desta crônica, já quase descendo do ônibus Ipiranga, ouvi:

Você continua morando naquela casa?

Mudei faz tempo. Desde que aquela jararaca foi pra lá.

Que jararaca?

Minha sogra.

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