

Opinião
O pulso ainda pulsa
Leptospirose, disenteria, esquistossomose, febre tifoide e cólera. Como a falta de saneamento básico impacta a saúde no Brasil


Encantadas com as novas tecnologias e descobertas científicas, que efetivamente ajudam a prolongar a vida e amenizar a dor e o sofrimento produzidos pelas doenças, muitas pessoas entendem que a garantia de boa saúde depende exclusivamente de acesso a médicos, hospitais e procedimentos. Todavia, cada vez mais a saúde precisa ser entendida como um direito social universal, que se confunde com o direito à vida.
As evidências científicas indicam, de forma inquestionável, que a saúde depende da qualidade de vida, determinada pelo nível de emprego, renda, moradia, saneamento, alimentação, segurança, educação, lazer e garantia de acesso a ações e serviços de saúde.
É preciso considerar, sobretudo, os determinantes sociais do processo saúde-doença. A “causa das causas” das doenças está diretamente relacionada às condições de vida e, em particular, à desigualdade social. Uma das facetas mais visíveis disso é a falta de saneamento básico.
De acordo com o IBGE, 100 milhões de brasileiros vivem sem coleta de esgoto e 35 milhões não têm sequer acesso a água tratada. Destinação inadequada de lixo, falta de acesso e tratamento de água e esgoto causam doenças como diarreia, dengue, leptospirose, esquistossomose, febre tifoide e cólera.
Considerando as internações hospitalares por Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI), assim como outras patologias relacionadas direta ou indiretamente com problemas de saneamento, totalizando 99 códigos na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), foram realizadas 612 mil internações em 2023, com custo total de 1,1 bilhão de reais.
Se considerarmos apenas os 41 hospitais universitários federais geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), foram 11,5 mil internações, a um custo total de 39,5 milhões de reais.
Da primeira obra de saneamento realizada no País – um poço construído por Estácio de Sá em 1561, quando expulsou os franceses da Baía de Guanabara –, passando pelas obras também de saneamento e expansão dos portos de Santos e do Rio de Janeiro por Saturnino de Brito, na primeira década do século XX até os dias atuais, temos uma história recheada de percalços e interesses.
Embora a incidência de doenças de veiculação hídrica nas estatísticas oficiais tenha diminuído sensivelmente, o problema persiste como um fantasma a rondar o futuro.
O saneamento é fator de desenvolvimento. Se os 100 milhões de brasileiros que não têm acesso adequado à coleta e ao tratamento de esgoto passassem a contar com esse serviço, o País economizaria 2,7 bilhões reais por ano em recursos do SUS, da Previdência e da assistência social. Portanto, não falamos de pouca coisa. Uma economia de 4 dólares per capita, segundo o Pnud.
Ter a saúde como prioridade num país tão desigual não é retórica política, é questão de sobrevivência. Para se ter vida em abundância (João 10:10) é necessário que o olhar do gestor público e a empatia da sociedade trabalhem em parceria. São fundamentais os investimentos, assim como as decisões de quem tem a caneta na mão.
A polêmica em torno do novo marco legal do saneamento é exemplo disso. Houve uma disputa acirrada no Congresso Nacional que culminou com a vitória daqueles que priorizam a iniciativa privada em detrimento do papel do Estado, o verdadeiro indutor desse setor.
O caso da Sabesp é paradigmático. Por iniciativa da nova administração estadual paulista, a empresa foi aberta a uma disputa de mercado, cujos resultados são imprecisos, a não ser a possibilidade real de aumento da tarifa para os usuários.
Para quem trabalha com a saúde na perspectiva pública, o problema da falta de saneamento adquire caráter de emergência nacional. O governo federal tem trabalhado na retomada de programas essenciais que foram esquecidos ou simplesmente destruídos pela gestão anterior.
Ampliar o tratamento do esgoto, promover a distribuição de água potável, cuidar da drenagem urbana e investir na coleta de resíduos sólidos são os pilares para um saneamento básico que garanta qualidade de vida à população. Os interesses políticos são legítimos, mas não podem atrapalhar aquilo que é essencial e se tornou um direito consagrado na Constituição de 1988. Afinal, como lembra a música dos Titãs, “o pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco”. •
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O pulso ainda pulsa’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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