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O produto esporte

No ritmo em que vamos, não será de espantar, como diz Paulo César Caju, se os norte-americanos acabarem por superar o futebol brasileiro

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Luiz Henrique, ao centro, celebra mais um gol pelo Fluminense. Foto: ANTONIO LACERDA / POOL / AFP
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O grande tema futebol brasileiro neste momento parece incontornável, pois diz respeito à Sociedade Anônima do Futebol (SAF), criada pela Lei 14.193/2021, promulgada em agosto do ano passado. Nos últimos dias, em uma reportagem sobre o assunto, publicada no jornal O Globo, li o depoimento dos presidentes de alguns clubes.

Romildo Bolzan Jr., do Grêmio, um dos clubes mais estáveis do País, levantou a bola dizendo que a proclamada SAF foi feita para clubes que estão endividados. No fundo, ele até pegou leve. A verdade é que a maior parte deles está mesmo é insolvente. Bolzan, depois de alguns boatos em torno da transformação do Grêmio em SAF, afirmou que este novo expediente cria dificuldades para que se façam mudanças estruturais nos clubes.

Pessoalmente, ando, há tempos, encucado com a situação do tricolor gaúcho. Na minha cabeça, só uma mudança de diretoria no clube poderia ter provocado tamanha derrocada, a ponto de o time ter deixado de disputar os títulos mais importantes e ser rebaixado à serie B do Campeonato Brasileiro, entre outros percalços.

Trata-se de um clube que, historicamente, sempre teve uma trajetória estável, figurando entre os melhores do País. Só posso atribuir as imensas dificuldades àquilo que acomete quase todos os outros clubes que se veem em situação semelhante: o dinheiro que anda curto. Os anos seguidos de sucesso devem ter deixado os cofres exauridos e, a esta altura, o time se vê obrigado a colocar em prática mudanças que se mostram inadiáveis. De toda maneira, a aprovação da SAF, em processo de discussão, não soluciona o caso. Ao contrário. A alteração estatutária resolve um problema imediato, de forma provisória, mas adia uma solução estrutural. O Grêmio parece retardar uma mudança profunda – esta, sim, necessária.

Na mesma reportagem, Walter Dal Zotto Jr., presidente do Juventude, lembrou uma razão determinante do desequilíbrio financeiro entre os clubes: a impossibilidade de fazer contratos longos que permitam a todos, clubes e jogadores, manter sua estabilidade e, principalmente, o nível técnico do nosso futebol. Os clubes ficam patinando. Como diz a expressão popular, vendem o almoço para pagar a janta.

O presidente Andres Rueda, do Santos, disse o melhor. Ele observa que a lei fala em “compradores” e sentencia, com propriedade, que “o clube tem de ser dos sócios”. O que isso significa? Que carecemos de democracia no esporte – algo que, de resto, faz falta em quase todas as atividades da sociedade brasileira. Tenho procurado analisar os negócios de clubes que adotam o futebol-empresa – seja ele em formato de Eireli, Ltda. ou SAF – como sendo arrendados, justamente, com base nessa preocupação de a cessão ter prazo definido.

O Paulo César Caju, em texto publicado na revista Placar, mostra-se inconformado – e se situa, inclusive, como um “dinossauro” – com a situação do futebol brasileiro. Ele cita o caso do jovem Luís Henrique, do Fluminense, que, ao se destacar com um golaço contra o Olímpia do Paraguai, pela Libertadores, viu surgir uma onda de protestos pelo fato de seu passe já estar negociado com o Betis, da Espanha.

Esta é uma das realidades que atormentam o torcedor brasileiro: a saída prematura das nossas revelações. Na verdade, é ainda pior que isso. Os clubes preparam os garotos não para potencializar seus times, mas, sim, com o olho na venda ao exterior. Isso tudo faz com que o nosso futebol se veja em uma areia movediça.

O Caju vai mais longe. Segundo ele, os clubes cedem as revelações e repatriam veteranos com contratos caros. Nesse ritmo, escreve Caju, não será de espantar se os norte-americanos acabarem por superar o futebol brasileiro. Lembro que já importamos dos Estados Unidos jogadores que saíram daqui jovens e que também foram repatriados. Na conclusão, Caju diz que o esporte é um grande negócio e usa a palavra “produto” para referir-se à NBA, Premier League, La Liga, Bundesliga etc.

Não por coincidência, chega ao Brasil, neste momento, Javier Teba, presidente da LFP, a liga que organiza o Campeo­nato Espanhol. Ele veio para “orientar” os cartolas brasileiros nas tratativas para a criação da nova liga brasileira, recentemente admitida pela CBF. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O produto esporte”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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