Opinião

O precipício cultural que separa as classes sociais no Brasil

A dificuldade em aceitar o outro não é minúscula, é maiúscula. O outro é ao mesmo tempo o centro do desejo e do medo

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“Enquanto o caminho espiritual do Oriente busca a interioridade do ser humano, nosso caminho ocidental busca a exterioridade. Um é o caminho para fora, para a conquista do espaço exterior, alcançar os últimos limites, demandar o infinito do céu acima de nossas cabeças. Outro é o caminho para dentro, pelos meandros de nossos desejos, pela profundidade de nossas intenções rumo ao próprio coração.”

Leonardo Boff, em “Reflexões de um velho teólogo e pensador”.

As sínteses tendem a ser virtuosas. Se fôssemos capazes de liberar a riqueza que resulta da união das tradições culturais do ocidente e do oriente, provavelmente teríamos um mundo melhor. Uma explosão atômica cultural.

Porém, a dificuldade em aceitar o outro não é minúscula, é maiúscula. O outro é ao mesmo tempo o centro do desejo e do medo. “Meu bem, meu zen, meu mal”, na letra bela de Caetano Veloso.

Por exemplo, no Brasil, país majoritariamente afrodescendente, os ataques a terreiros de religiões de matriz africana aumentaram 47% no último ano.

Não se trata do vilipêndio de uma religião – o que já seria gravíssimo, mas de ataque frontal a toda uma cultura e à espiritualidade dos povos brasileiro e africano.

Dessa forma, vamos nos divorciando de nós mesmos. De fato, o desejo de partir está na maioria, como mostram as pesquisas; o medo nos assalta; fala-se muito da violência e quase nada da facilitação dos encontros (exceto os virtuais, nas redes sociais e aplicativos, nos quais, sintomaticamente, estamos entre os campeões de acessos).

 

Nesse sentido, compartilhamos muito com Honduras, nosso irmão centro-americano: apresentamos as maiores concentrações de renda do mundo; as piores taxas de homicídios; e ambos os países passamos por golpes de estado recentemente (de uma série).

Na semana passada, os hondurenhos e hondurenhas, trabalhadores e trabalhadoras da saúde e da educação, pararam o país contra a privatização daqueles serviços essenciais. Sequer a Embaixada dos EUA, inspiradora conspícua das privatizações (e dos golpes e “reformas”) foi poupada, tendo sido incendiada a entrada principal do prédio.

Vale notar que os índices de homicídios em ambos os países são tão altos que superam aqueles de países em conflitos armados convencionais.

Para entender a gravíssima situação brasileira, recomendo a leitura de “A guerra – a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, magnífico livro de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, da Editora Todavia.

São tantas as virtudes da obra, que se faz difícil enumerar.

Em primeiro lugar, pelo alerta extremamente oportuno neste momento de liberação indiscriminada de armas e de licença para matar – contida na proposta “anticrime”, sob consideração do Congresso: violência só gera mais violência, sendo o Primeiro Comando da Capital (PCC) resultado direto do massacre do Carandiru, em que 111 detentos sob guarda do Estado foram assassinados. O então vice-governador de São Paulo era Aloysio Nunes Ferreira, posteriormente presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e chanceler de Michel Temer. Os policiais militares responsáveis pela chacina foram absolvidos…

Após o massacre, em outubro de 1992, surge o PCC, em 1993, como forma de organização criminal supostamente contra a violência do Estado.

Atualmente, o PCC disputa com outras organizações criminais a primazia pelo tráfico de drogas no País e na América do Sul, com ramificações no Paraguai, na Bolívia, no Peru e na Colômbia.

Outra virtude da pesquisa empreendida pelos autores foi sublinhar o desquite entre as culturas no País, tal o abismo existente entre as classes sociais. Ao lado disso, ressaltam como as mídias sociais vêm sendo utilizadas pelo crime organizado, muito antes do desfecho eleitoral de 2018, sem que o “andar de cima” se desse conta, até o trágico desfecho eleitoral deixasse isso patente.

A esse respeito, vale citar trecho do livro em apreço: “Em agosto de 2016… o PCC liderou uma rebelião na Penitenciária de Segurança Máxima de Navirai, em Mato Grosso do Sul, a cerca de 400 quilômetros de Campo Grande. Três presos supostamente ligados ao CV (Comando Vermelho) foram mortos, um deles decapitado. Ônibus ainda foram queimados na cidade. Com o fim do tumulto, um vídeo foi gravado por um preso alertando a todos de que “todo mundo ia morrer” e que “todas as comarcas vão quebrar”. A imagem foi compartilhada para outras prisões e para fora dos presídios por WhatsApp, ferramenta que se transformaria no grande disseminador da barbárie que estava prestes a se multiplicar.”

A afirmação, ainda mais quando lida a posteriori, é impressionantemente profética.

É tal o precipício cultural existente entre as classes sociais no Brasil que mal falamos a mesma língua, como a obra bem ressalta.

Talvez um ponto de encontro possa ser a ação humanitária, que irá requerer esforço de ambas as partes, pois não são poucos os preconceitos sobre o tema, em um país que cada vez mais nega direitos humanos – inclusive a compreensão deles – a seus filhos, filhas, avós e netos.

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