Cecília Figueiredo

Professora do curso de jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Denis Monteiro

Agrônomo, doutor em inovação na agropecuária, integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Foi membro da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica entre 2012 e 2018.

Opinião

O povo precisa comer frutas, legumes e verduras. Duas políticas existentes podem ajudar

O Plano de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar garantem o direito da população de se alimentar bem

Foto: MST
Apoie Siga-nos no

Em meio à grave crise econômica, política e sanitária que vivemos, o Brasil voltou ao mapa da fome. A contra face desta triste realidade é o surgimento de um mosaico de ações de solidariedade vindas da sociedade civil organizada que será lembrado por décadas. Mas as soluções para o problema da fome e da insegurança alimentar também pode vir de políticas públicas simples e eficientes como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos. Basta vontade política para destinar recursos e executar os programas.

Uma pesquisa recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional mostrou que 19 milhões de brasileiros e brasileiras passam fome, quase 10% da população. São quatro milhões de crianças e adolescentes no meio dessa tragédia. A fome é uma das faces cruéis das crises econômica, política e sanitária que golpeiam o país desgovernado. As informações são de dezembro de 2020, a realidade pode ter ficado ainda pior nos primeiros meses de 2021, já que o auxílio emergencial acabou em dezembro e só retornou, minguado, em abril.

Nos últimos 12 meses, a inflação dos alimentos foi de quase 20%, aumento que chega a 70% no arroz e no feijão. A comida que se comprava com R$ 300 no início da pandemia, agora, são necessários pelo menos R$ 360. O cenário só não é ainda pior porque coletivos e movimentos populares reagiram rapidamente a partir de março de 2020, arregaçaram as mangas e, como formiguinhas, organizaram milhares de iniciativas de doações de comida nas periferias das cidades.

Um exemplo recente: no dia 26 de fevereiro de 2021, o caminhão da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, chegou ao Jardim São Remo, zona oeste da capital paulista, e dele saíram 11 toneladas de alimentos saudáveis que a associação de moradores destinou a mil famílias. Em outro caso, o Mutirão do Bem Viver arrecadou R$ 500 mil através de financiamento colaborativo, dinheiro usado para comprar comida da agricultura familiar e doar nas periferias e comunidades indígenas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está à frente de uma das maiores ações já vistas no país de doações de alimentos de assentamentos da reforma agrária. Desde março de 2020 foram mais de 4.000 toneladas. O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em seu Mutirão Contra a Fome, já doou mais de 1.000 toneladas. E estes são apenas alguns exemplos, entre os mais conhecidos, mas o que existe no Brasil é um lindo mosaico de ações de solidariedade que será lembrado por décadas.

Alimentos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) no município de Santo Sé, Bahia (Foto: Divulgação)

Políticas públicas já existem e precisam ser colocadas em prática

A sociedade civil está fazendo sua parte com os recursos que consegue mobilizar. Infelizmente, porém, a resposta do Estado brasileiro ao avanço da fome tem sido lenta e insuficiente, apesar das soluções serem conhecidas. Não faltam ideias nem recursos, falta decisão política. Os governos precisam agir rapidamente. Vejamos duas propostas.

Uma das soluções para que essas 19 milhões de pessoas não mais passem fome é o governo federal destinar imediatamente no mínimo R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). A ideia deste programa, formulada em 2003 pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), é simples e muito eficiente. O governo destina recursos do orçamento federal para comprar alimentos diretamente da agricultura familiar e, através das entidades da rede de assistência social, doa a famílias em situação de insegurança alimentar.

O programa é operado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e por governos estaduais e municipais. Em 2012, no seu auge, destinou o equivalente a R$ 1,2 bilhão (valor corrigido pela inflação) para comprar alimentos de 180 mil agricultores e agricultoras familiares, doados por 24.000 entidades assistenciais. O PAA foi muito importante para o Brasil sair do mapa da fome em 2014, mas nos últimos anos o programa vinha perdendo orçamento.

Com a pandemia e a pressão da sociedade civil, uma medida provisória destinou R$ 500 milhões para o PAA em 2020, uma vitória importante da mobilização da sociedade. Começamos a ver caixas de alimentos saudáveis produzidos pela agricultura familiar chegarem a organizações de assistência social, como por exemplo no município de Sento Sé, sertão baiano, onde 13 famílias agricultoras forneceram 20 toneladas de alimentos saudáveis, incluindo acerola, mamão, abóbora, banana, laranja e verduras, tudo produzido sem agrotóxicos. Vimos uma tonelada de caqui produzido em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, chegar aos bancos de alimentos de quatro municípios.

Inspirada no PAA, em 2020 a Fundação Banco do Brasil destinou recursos a organizações parceiras que atuam na promoção da agroecologia para que elas comprassem diretamente da agricultura familiar e doassem nas periferias, ação retratada no documentário “Solidariedade: respostas da agricultura familiar à pandemia”.

No entanto, ao invés de avançar, o governo federal retrocedeu, e colocou no orçamento de 2021 apenas R$ 100 milhões para o PAA, valor absolutamente insuficiente para o tamanho do problema. O governo federal deve destinar no mínimo R$ 1 bilhão para o PAA. Com este valor, é possível comprar mais de 250 mil toneladas de alimentos de 200 mil agricultores e agricultoras familiares. É recurso público que dinamiza diretamente a economia dos municípios, pois este dinheiro é gasto no comércio local e usado pelas famílias agricultoras para estruturar melhor suas propriedades para seguir produzindo alimentos.

 

A prioridade do PAA deve ser comprar frutas, legumes e verduras, pois são alimentos que famílias em maior vulnerabilidade logo deixam de comprar quando a coisa aperta. Se o dinheiro só dá pra comprar arroz, óleo, feijão e macarrão, a qualidade da alimentação empobrece. E esse povo precisa, e tem o direito, de se alimentar bem. Cerca de 250 mil toneladas de frutas, legumes e verduras doadas para as 19 milhões de pessoas que hoje passam fome garantiriam 13 kg desses alimentos para cada pessoa. Isso significa o consumo de 200 gramas de frutas, legumes e verduras por 65 dias. Não resolve o problema, mas já é uma ajuda e tanto para colorir o prato de quem mais precisa e para que as crianças possam tomar suco de fruta.

A outra solução é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma das maiores políticas de segurança alimentar e nutricional do mundo. Quase todas as quatro milhões de crianças e adolescentes que hoje estão enfrentando a fome são beneficiárias do PNAE, que atende a 40 milhões de estudantes da rede pública. O orçamento anual do programa é de R$ 4 bilhões, dos quais no mínimo 30% devem ser usados para comprar diretamente da agricultura familiar. O governo federal repassa os recursos, e a compra é feita pelos governos estaduais e municipais.

Com as escolas fechadas por causa da pandemia, a maioria dos governos deixou de comprar os alimentos e passou a dar um cartão merenda para as famílias, aproximadamente R$ 50 por mês. É claro que ajuda, mas é muito mais eficiente para enfrentar a fome e promover acesso a frutas, legumes e verduras destinar esses recursos para comprar alimentos no atacado e diretamente da agricultura familiar de cada local. Fazendo assim, o mesmo recurso permite comprar uma quantidade maior, garante diversidade, valoriza as culturas alimentares de cada região e incentiva hábitos alimentares saudáveis. Além disso, apoia a agricultura familiar do território, fazendo com que o dinheiro público circule na economia local.

Felizmente diversas prefeituras, com a de Morros, Maranhão, e alguns governos estaduais, como o do Rio Grande do Norte, seguiram comprando da agricultura familiar em 2020, mesmo com as escolas fechadas, e assim mostram que é possível fazer, se houver decisão política e diálogo entre o governo e organizações da sociedade civil.

Enfrentar o problema da fome de 19 milhões de brasileiros e brasileiras exige que os governos atuem com seriedade. O PAA e o PNAE fazem parte da solução. Em relação ao PNAE, a melhor política é comprar alimentos diretamente da agricultura familiar do município ou de municípios vizinhos, e distribuir às famílias dos estudantes. No caso do PAA, o mínimo que o governo federal tem que fazer é destinar, imediatamente, R$ 1 bilhão do orçamento de 2021, demanda da bancada progressista e de movimentos do campo, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Governos estaduais e municipais também podem, e devem, destinar recursos de seus orçamentos. Já estamos entrando no quinto mês de 2021, é urgente a ação dos governos pois, como ensinou Betinho, quem tem fome tem pressa.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo