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O poder do carisma

Lula é o único capaz, neste momento, de tornar velhos inimigos em leais adversários

Imagem: Mauro Horita/Getty Images/AFP
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A vitória de domingo foi a vitória do carisma. Esse carisma político que só se obtém depois de uma extraordinária história de vida. Um carisma construído no percurso singular de alguém que sofreu pessoalmente a exclusão e a pobreza e que lutou contra a ditadura militar num período em que se fazia política com risco de vida. Um carisma que vem do indiscutível êxito da sua governança anterior na promoção da igualdade econômica e no que isso significa de efetivo avanço democrático. Um carisma recentemente ampliado pela provação de uma prisão injusta e politicamente motivada. Um carisma baseado numa vida política que sempre buscou o diálogo e o compromisso e que sempre rejeitou o ressentimento ou o ajuste de contas social. Um carisma fundado na superioridade de uma nova plataforma social de igualdade. Foi esse carisma que venceu. Mercê de uma biografia absolutamente extraordinária, Lula é, neste momento, o único personagem da política brasileira que tem autoridade política para transformar velhos inimigos em ­leais adversários. Quando escolheram Lula para presidente, os brasileiros sabiam exatamente o que estavam a fazer.

A grandeza política dessa vitória parece querer ser obscurecida com a tese da “polarização” como o grande mal brasileiro. Falta paciência para ouvir tal disparate sem reagir. A tese parece desde logo idiota na medida em que é impossível manter um sistema de eleição presidencial em dois turnos exigindo ao mesmo tempo que não haja polarização. É como se o sistema democrático dissesse ao povo que o segundo turno terá os dois candidatos mais votados, que a escolha final será feita entre os dois, mas, ao mesmo tempo, recomendar ao mesmo povo que evite qualquer espécie de polarização porque esta agride a sensibilidade democrática de alguns. Não, não me parece que nada disso seja lógico nem que nada disso seja inteligente. Ao contrário, parece absurdo. A “polarização” não explica nada, mas esconde muito.

Desculpem insistir na explicação. O sistema presidencial (por contraponto à tradição parlamentar proporcional europeia) convida à formação de dois polos. O sistema a dois turnos incentiva-os ainda mais. Em todas as eleições presidenciais brasileiras que tiveram dois turnos, e foram todas menos uma, houve polarização – um lado e o outro, e muitas vezes os dois muito próximos. Que me recorde, ninguém se queixou que as anteriores eleições estivessem polarizadas, no sentido de identificar um fenômeno novo e um dano democrático. Por outro lado, se olharmos lá para fora, para o sistema eleitoral norte-americano, onde toda a América Latina se inspirou, ele é sempre polarizado quando chegam as eleições presidenciais e ninguém parece ver algum mal nisso. Aliás, bem-vistas as coisas, a vida política norte-americana vive em permanente polarização há mais de 200 anos sem que ninguém veja nisso qualquer problema democrático.

Assim sendo, e se estou a ver bem as coisas, estamos a falar de outra coisa, de outro fenômeno político que nada tem a ver com polarização, mas com a intransigência política. O que se está a viver no Brasil é um perigoso fenômeno de intolerância política. A imagem perturbadora da deputada, de arma em punho, atrás de um cidadão com quem acabou de ter uma discussão política, não tem nada a ver com polarização, mas com violência política. Espero que, agora, o meu ponto esteja claro – o problema brasileiro não tem a ver com polarização, mas com radicalização, com extremismo político.

O conselho de moderação precisa ser dirigido não aos aliados do petista, mas à direita não bolsonarista

Por outro lado, a denominação da situação brasileira como “polarização” não me parece nada inocente. O uso da expressão torna os dois lados equivalentes e iguais. Se o problema é a “polarização”, então os dois polos são responsáveis. Se o problema é a “polarização”, então podemos acusar ambos os polos de fomentar a divisão e a desgraça entre as famílias. Podemos responsabilizá-los, a ambos, pela falta de respeito democrático que torna a convivência política difícil. Se, no início, o termo “polarização” era apenas usado pelos ansiosos da terceira via, agora é usado pelos nostálgicos dessa solução política, como forma de tornar os dois lados moralmente equivalentes no que concerne ao respeito pelas regras democráticas. Desculpem, mas não é assim. A responsabilidade da violência política está num só lado, não está nos dois. Um lado agride, o outro fala de paz, um lado ameaça instituições, o outro estende a mão, um lado cumprimentou o vencedor e desejou-lhe sucesso quando perdeu, o outro não o fez, não o faz e não o fará, porque nunca entendeu as eleições democráticas como condição de legitimidade. Não, o mal do Brasil não é a polarização, é a intransigência política e essa existe apenas de um só lado.

Na manhã seguinte às eleições, um dos principais jornais brasileiros, em editorial, aconselhava Lula a governar ao centro. Francamente, não sei por onde andaram os jornalistas nestes últimos meses. Durante toda a campanha, aquele candidato não fez outra coisa senão promover uma aliança explícita com o centro político mais moderado. Começou a fazê-lo com Geraldo Alckmin, acabou com Simone Tebet. Há muito tempo, ao menos desde 2002, que Lula compreendeu que a esquerda só ganha eleições se atrair para o seu lado o centro democrático e progressista. Essa foi a receita que, mais uma vez, acabou triunfante nestas eleições. Todavia, esse conselho de moderação que os jornalistas dão ao vencedor, no momento exato em que o perdedor não reconhece o resultado eleitoral, é um ato falho. Para o dizer sem ambiguidades, conselhos de moderação precisa a direita, não a esquerda. O desafio da direita democrática é o de formar uma nova plataforma política alternativa, consistente e moderada, capaz de disputar as próximas eleições sem ameaçar pôr em causa a democracia. De forma simples, a agenda da direita é cortar em definitivo com a extrema-direita, se quiser voltar a ganhar eleições. Esses, sim, precisam de conselhos. •


*Ex-primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O poder do carisma”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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