

Opinião
O PIB e a inflação
Se os juros subirem, o custo será elevado no desmonte de um padrão com características mais virtuosas, como a da liderança do investimento


Nem bem havia esfriado o noticiário sobre o PIB do segundo trimestre de 2024 e o coro do mercado financeiro se fez ouvir: é necessário aumentar a taxa de juros! O diagnóstico é o de que a economia está superaquecida, já pressiona os preços e a inflação poderá sair de controle. E todo esse barulho para um crescimento cuja projeção otimista para o ano de 2024 é de apenas 3%. À luz dos indicadores conjunturais da economia brasileira o diagnóstico parece superdimensionado, mas convém avaliá-lo em detalhe.
O aumento do PIB de 1,4% no segundo trimestre de 2024 é, de fato, um número muito bom, mas não pode ser extrapolado, ou ser tomado como um dado de tendência. De fato, ele representa uma aceleração ante os trimestres anteriores, sobretudo quanto aos dois trimestres finais de 2023, nos quais a economia estava estagnada. Os números dos dois primeiros trimestres de 2024 estão levando o crescimento anualizado para um patamar de 3%. As flutuações se darão em torno desse valor, exceto se houver uma forte aceleração ou desaceleração. Quem aposta nessas hipóteses deveria esclarecer quais seriam as suas fontes.
O aspecto mais animador do PIB não é o o seu crescimento, mas a sua composição. Da perspectiva da oferta, a liderança, após vários anos, foi retomada pela indústria, superando por boa margem os serviços. E este desempenho foi observado para vários segmentos que produzem prioritariamente para o mercado interno; serviços de utilidade pública, construção e manufatura. Nos serviços, a composição também melhorou com aqueles de maior produtividade e formalização – atividades financeiras, informação e comunicação, transporte – crescendo acima da média do setor.
Ainda na indústria, os segmentos mais dinâmicos foram os de bens de consumo duráveis e bens de capital. Nos primeiros sete meses do ano cresceram, respectivamente, 8,1% e 6,8%, contra igual período do ano anterior. Esses dois segmentos aceleram o crescimento enquanto na extrativa mineral ocorre uma forte desaceleração e os bens não duráveis mantêm o ritmo. Isto significa que a produção para o mercado externo perdeu peso. No âmbito doméstico, a liderança dos duráveis e a estabilidade dos não duráveis traduzem a continuidade do aumento da massa de rendimentos e o deslanchar de um novo componente: o crédito. Nesse período, a concessão de novos empréstimos às famílias cresceu cerca de 15%, concentrados no financiamento de bens e veículos. Assim, nesse novo padrão incipiente não há como ignorar o papel decisivo do crédito ao consumo, reflexo do ciclo de queda da Selic que vai de agosto de 2023 a abril de 2024.
A aceleração do crescimento da indústria de bens de capital é a tradução no plano da oferta do aumento do investimento (FBCF). A ampliação do investimento é notável: a FBCF sai de valores negativos para positivos e expressivos nos dois trimestres de 2024 e, no último, lidera o crescimento da demanda agregada. Como já apontado, isso leva à dinamização do segmento produtor de bens de capital, que no semestre só perde em dinamismo para o de bens de consumo duráveis.
Do ponto de vista da composição, esse novo padrão do investimento resulta da combinação do investimento autônomo com o induzido. O primeiro responde à demanda pré-existente, por exemplo, na construção de estradas, linhas de transmissão, saneamento, ou produção para exportação, como petróleo, minérios etc. O induzido diz respeito à necessidade de ampliar a capacidade produtiva ante o crescimento continuado da demanda corrente, sobretudo a derivada da massa salarial e do crédito. Contudo, contrasta com essa trajetória recente um desempenho pífio nos últimos anos, com a taxa de investimento (16,8% do PIB), situando-se como uma das menores da história recente.
Algumas observações adicionais sobre este novo padrão. Desde logo, o seu caráter incipiente. Ele só é claramente dominante a partir do início de 2024. O papel do crédito é decisivo para a sua sustentação. Do ponto de vista do consumo, ele se desloca da massa salarial e inclui também itens de maior valor. No investimento, a disponibilidade do crédito de curto prazo às empresas é crucial para a produção de novas máquinas e equipamentos, e a de longo para financiar sua aquisição. Outro aspecto crucial: esse novo padrão é mais intensivo em importações de insumos, partes e peças e produtos acabados, refletindo o esgarçamento das cadeias produtivas na indústria. No primeiro semestre de 2024, a importações aceleram seu crescimento para 12,6% contra período homólogo de 2023, no qual o crescimento foi de 1,5%.
O registro do maior coeficiente importado desse padrão é crucial para entender as suas implicações sobre a capacidade produtiva e os preços. Assim, de acordo com a CNI, o coeficiente médio de insumos importados na indústria é de 25%. Em alguns dos segmentos cruciais do novo padrão ele é bem mais elevado: 44,4% em eletroeletrônicos e informática e 30,6% em equipamento de transporte. No coeficiente importado de produtos finais, para máquinas de uso geral, temos 56,5%, e para máquinas, aparelhos e material elétrico, 40,6%. Isto significa que a ampliação da oferta de bens duráveis de consumo e de máquinas depende menos da oferta doméstica. Ademais, o impacto da demanda sobre a capacidade instalada e preços é mitigada, ou seja, a oferta e os preços têm um componente internacional crucial.
Identificar o maior peso do coeficiente importado na oferta dos bens relevantes do novo padrão implica reconhecer sua menor dependência da oferta doméstica, mas, também, o papel das variações da taxa de câmbio na determinação de seus preços. Grosso modo, pode-se identificar ao menos três padrões distintos de variação de preços na economia brasileira: nos bens comercializáveis (tradeables), compreendendo as commodities e os industriais importados; nos bens não comercializáveis (non-tradeables), os serviços.
As commodities são bens sujeitos ao duplo choque: o de variação de preço internacional e da taxa de câmbio. Em geral, esses choques de preços são os mais intensos e atingem dois subconjuntos cruciais – alimentos e combustíveis. A variação contrária da taxa de câmbio pode atenuá-los, quando o país é importante produtor. Quando é importador, o choque é duplo. O Brasil foi vítima de vários desses choques no passado recente.
No caso dos bens industriais, não há choque duplo. É muito pouco provável nesse caso um choque de demanda, que faça aumentar rapidamente os preços. É necessário que esta cresça de forma significativa e continuada para que isto ocorra. Na verdade, se olharmos os últimos trinta anos, com a ascensão da China e dos asiáticos, o que ocorreu foi uma queda de preços relativos desses bens. E essa tendência persiste no âmbito internacional da disputa por mercados. Assim, no mais das vezes, o aumento de seus preços no âmbito doméstico decorre da posição da taxa de câmbio. Assim, o padrão de evolução dos preços industriais tem pouca sensibilidade ao crescimento da demanda agregada e muita elasticidade às flutuações da taxa de câmbio. Mas, enquanto tendência, a sua queda relativa ante os outros preços é expressiva diante da desvalorização ou mesmo manutenção da taxa de câmbio. Ao que tudo indica, a concorrência acirrada no plano global é um fator de contenção de preços.
Os serviços podem ser tomados como uma ilustração dos segmentos non-tradeables. A aparência do setor é de uma estrutura concorrencial. Mas, convém não confundir a (des) organização e precarização das relações de trabalho com a propriedade das empresas. Em vários segmentos, a estrutura de mercado é oligopolizada. Isto não muda o fato da maior sensibilidade dos preços às flutuações da demanda, apenas introduz o elemento da concentração como ampliador dessa sensibilidade sobretudo nos momentos de expansão. Por sua vez, parte dos preços dos serviços responde diretamente às flutuações da demanda, enquanto outra parte à inflação passada, e o peso desses componentes varia ao longo do ciclo.
A dinâmica dos preços desse segmento tem de ser olhada a partir de uma dupla dimensão: do aumento da demanda em termos de seus principais segmentos e da pressão do mercado de trabalho, em particular de um aumento generalizado das remunerações e seu repasse para os preços. Um olhar mais longo sobre os preços dos serviços, mesmo tomando o agregado do setor e comparando-o com o IPCA, revela que o padrão observado é o de uma sensibilidade maior dos serviços ante as flutuações da demanda. Mas, o que cabe observar é que este movimento em muitos momentos traduz uma mudança de preços relativos. Por exemplo, no período pós-pandemia, nos anos 2021 e metade de 2022, os preços dos serviços, refletindo inclusive as restrições sanitárias ao funcionamento presencial do setor, cresceram bastante abaixo dos demais preços. Dessa data em diante, a continuidade do crescimento e a ausência de restrições aos serviços presenciais faz seus preços crescerem acima dos demais. A rigor, isso não é inflação, ou aumento continuado de preços, mas flutuação de preços relativos.
Para tentar elucidar qual a pressão que as remunerações estariam exercendo sobre os preços dos serviços, ou seja, qual a pressão de custos, portanto para além do crescimento da demanda, cabe analisar a evolução da composição setorial e das remunerações do setor. Isto é relevante porque a pressão sobre preços, se existe, para além da recomposição de preços relativos, pode advir tanto do aumento das remunerações quanto da ampliação das margens das empresas. No primeiro caso, a desaceleração do crescimento é um instrumento eficaz para conter o aumento de preços; no segundo, muito menos.
A pressão disseminada de remunerações sobre margens de lucros e preços inexiste na economia brasileira. Por duas razões essenciais: primeiro porque o aumento das remunerações, até o momento, apenas recupera as perdas decorrentes do período da pandemia e isto é ainda mais verdadeiro no caso dos salários. No caso do rendimento médio real habitual das ocupações, pesquisado pela PNAD, observa-se uma queda de 15% entre jun-jul-ago de 2020 e nov-dez-jan de 2022. Entre esse último trimestre e o mais recente, mai-jun-jul de 2024, esses rendimentos crescem exatamente 15%, mas o valor real absoluto ainda é inferior ao do pico do período. Olhando-se exclusivamente a parte ascendente da curva, o desempenho parece excepcional, mas a consideração do conjunto do período indica que estamos ainda diante da recuperação de patamares anteriores e adequados aos níveis de produtividade pré-existentes.
A trajetória dos salários no emprego formal divulgada pelo Caged– um dado muito mais preciso do que o da PNAD, por se tratar de declarações formais e legais das empresas – é muito mais moderada. O salário médio real de admissão sofreu um tombo semelhante ao das remunerações com a pandemia, mas a sua recuperação foi muito mais lenta. O ritmo de crescimento nessa recuperação que ocorre desde 2022 é de 1,5% a.a., uma evolução aquém do aumento da produtividade média da economia.
Por fim, quais as conjecturas que se pode fazer sobre a trajetória da inflação ante a continuidade do crescimento do PIB e do seu novo padrão? Ele de fato ameaça a estabilidade de preços? Descartada uma pressão generalizada de salários e remunerações sobre os preços, o comportamento desses últimos deverá obedecer a padrões setoriais. Nos tradeables, as commodities deverão responder à persistente desaceleração global, mostrando queda generalizada, o que aliás já está ocorrendo. Nas manufaturas cuja sensibilidade às flutuações da demanda é menos acentuada, é possível prever preços estáveis. Dessa forma, só haverá pressão de preços no plano doméstico se o real se desvalorizar. Dado o atual patamar, isso parece improvável.
Nos bens non–tradeables, em particular os serviços, é pouco provável a continuidade de sua trajetória mais acentuada com alta anual em torno de 5%. O principal segmento que pressiona os preços é o de serviços prestados às famílias. Do ponto de vista da demanda, este foi o último segmento a se recuperar pós-pandemia e é previsível que arrefeça. Quanto à oferta de força de trabalho e suas remunerações há, desde logo, a considerar que os requisitos de qualificação para incorporá-la nesse segmento são muito baixos. Isto põe à disposição da produção uma oferta elástica que pode ser medida – de forma aproximada, pela taxa composta de subutilização da força de trabalho – de cerca de 18, 7 milhões de pessoas.
Em síntese, é pouco provável que haja na economia brasileira atual, a partir de seu ritmo e padrão de crescimento, pressões significativas para elevação dos preços no futuro próximo e que essas pressões exijam uma elevação da taxa de juros. Se isso ocorrer, o custo será elevado sobretudo no desmonte de um padrão com características mais virtuosas, como a da liderança do investimento.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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