

Opinião
O paulistano lavou as mãos
Diante da indiferença de muitos e da ausência de uma articulação eficaz da esquerda, o conservadorismo avança e ocupa o espaço que a participação popular abandona


São Paulo acaba de vivenciar um segundo turno no qual, mais do que definir um vencedor, o paulistano lavou as mãos. A abstenção recorde não é apenas um detalhe eleitoral, mas um símbolo de um desinteresse profundo – um verdadeiro Pôncio Pilatos moderno. O que essa escolha reflete? Uma cidade que decidiu aceitar o que lhe é imposto, enquanto o centrão, sob direção de Gilberto Kassab, reorganiza o campo político e consolida um conservadorismo que representa uma derrota silenciosa para o setor progressista e para os movimentos sociais.
Este resultado em São Paulo reflete um movimento observado em várias capitais, nas quais o centrão e a direita se fortaleceram, ampliando seu domínio político em todo o país. Com o MDB e o PSD estabelecidos como os principais vencedores das eleições municipais de 2024, juntos controlarão cerca de 38% dos orçamentos municipais do Brasil a partir do ano que vem – um total de R$ 489 bilhões. A reeleição de Ricardo Nunes e Eduardo Paes, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, não é um acaso isolado, mas parte de uma estratégia deliberada. Este avanço do centrão nas capitais aponta para uma escolha política de fortalecer o controle local em um cenário nacional marcado pelo baixo poder de articulação da esquerda e pela escassa participação do presidente Lula nas campanhas. Além disso, o avanço conservador não apenas ocupa territórios, mas também garante, por meio das emendas parlamentares, o fermento para que o bolo do centrão cresça de forma orgânica e eficaz.
A vitória de Nunes não é apenas pessoal, é também do projeto político que une centrão e direita em um alinhamento que endurece as pautas sociais e enfraquece conquistas históricas. Em São Paulo, isso se traduz em uma série de retrocessos, que atingem lutas pelo direito à moradia, pela saúde pública e por direitos reprodutivos, minados durante a primeira gestão de Nunes.
Essa estratégia de controle municipal, aparentemente silenciosa, consolida uma base política que agora alcança quase 40% dos orçamentos municipais no país – e a cada capital conquistada, avança também a agenda que fortalece um conservadorismo cada vez mais hostil às demandas sociais.
É irônico que a mesma capital que escolheu Lula como presidente agora escolha Bolsonaro como prefeito
Nunes já deu sinais de que seu mandato visa limitar a autonomia desses grupos. A interrupção dos serviços de apoio ao aborto é um exemplo concreto. Ao transferir essa questão para o governador Tarcísio de Freitas, o prefeito reforça uma regressão que afeta diretamente mulheres e minorias, impulsionando uma campanha pela criminalização dos direitos reprodutivos. Esse movimento, somado à pressão sobre organizações de direitos civis, estabelece um cenário em que a voz dessas classes é silenciada.
Outro ponto alarmante é a ampliação do sistema Smart Sampa, uma das principais propostas de campanha de Nunes. Sob o discurso de “segurança inteligente”, a iniciativa representa o avanço do que muitos chamam de “racismo algorítmico”. Automatizado e impessoal, o sistema de vigilância reforça a estigmatização das periferias, ao priorizar o monitoramento de pessoas vulneráveis e perpetuar desigualdades. Essa política, disfarçada de modernização, impacta desproporcionalmente os mesmos territórios que Nunes e sua base conservadora prometem proteger.
Em paralelo, a vitória de Ricardo Nunes acentua a privatização dos serviços públicos. A Casa de Cultura, a Sabesp e até o serviço funerário são alvos desse projeto, que beneficia interesses privados em detrimento do bem público. Além disso, a presença de organizações religiosas assumindo funções do estado revela uma confusão cada vez maior entre política e religião, na qual o que deveria ser público se torna uma extensão de dogmas religiosos, minando a laicidade da gestão pública.
É irônico que a mesma capital que escolheu Lula como presidente agora escolha Bolsonaro como prefeito. Essa guinada evidencia o desgaste na relação entre os movimentos sociais e a população que buscam representar, enquanto o discurso conservador cresce em influência.
O avanço conservador age em pequenas, mas poderosas, restrições aos direitos sociais. Não há um único golpe contra as pautas progressistas, mas uma sequência de ações menores que, somadas, enfraquecem os setores progressistas e colocam em xeque conquistas históricas. O cenário aponta para um futuro em que figuras como Derrite e Tarcísio se consolidam na política estadual e nacional, ameaçando estabelecer um sistema cada vez mais hostil.
Com a vitória de Ricardo Nunes, não é apenas ele quem vence, mas um projeto político que criminaliza, enfraquece e marginaliza os movimentos sociais. Diante da indiferença de muitos e da ausência de uma articulação eficaz da esquerda, o conservadorismo avança e ocupa o espaço que a participação popular abandona. O paulistano, ao lavar as mãos, entrega a capital e as pautas sociais a uma lógica que prioriza o controle e silencia vozes progressistas. A questão que resta é: quantos desses “golpes silenciosos” a democracia brasileira ainda poderá suportar? Quando se trata de democracia, entre mortos e feridos não se salvam todos.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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