Eloisa Artuso

Pesquisadora, educadora, designer estratégica e cofundadora e diretora executiva da Febre, plataforma de pesquisa, estratégia e conteúdo multimídia

Opinião

O papel da mulher na criação de alternativas para a produção de matérias-primas para a moda 

É importante que a moda ajude a idealizar matrizes socioeconômicas alternativas, capazes de fortalecer o desenvolvimento local sustentável e preservar biomas

(Foto: Oxfam Brasil/Divulgação)
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Tem floresta em pé, tem mulher é o nome da campanha lançada recentemente pela Oxfam Brasil em parceria com o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (Miqcb), o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). A inciativa vem para nos lembrar que o Brasil é formado por uma sociedade capitalista patriarcal marcada pela desigualdade racial e de classe, com uma economia inserida globalmente por meio da exploração de matérias-primas e mão-de-obra barata. 

Nesse contexto, a terra e os recursos naturais estão concentrados nas mãos de poucos: pelos dados do Censo Agro 2017, 1% dos maiores estabelecimentos rurais ocupam 47,3% enquanto os 50% menores ocupam apenas 2,1%. Essa parcela significativa da população tem a terra como casa e depende dela para sobreviver, desenvolver seus meios de subsistência, cultura, conhecimento e tradições. Para esses grupos, terra, água e cultivos não são commodities. 

A campanha destaca também que mulheres e homens se relacionam com a terra e com os recursos naturais de forma diferente, principalmente porque nossa cultura exclui mulheres, sobretudo as racializadas, dos espaços de liderança e tomada de decisão – o que não reflete a real contribuição diária das mulheres campesinas, indígenas, quilombolas, extrativistas, marisqueiras etc. no cuidado com a terra, defesa de seus territórios, recursos naturais e luta contra as alterações climáticas e pela justiça de gênero e racial. 

Trazendo essa discussão para a cadeia produtiva da moda – que  é fortemente criticada por seus excessos, abusos dos direitos humanos e esgotamento ambiental – vemos  que a maior concentração de dióxido de carbono (CO2), gás de efeito estufa, ocorre no nível da produção de matérias-primas, o que implica em um enorme impacto climático. E é sobre essa etapa que eu quero tratar aqui. Porque é importante que haja uma revisão e propostas de matrizes socioeconômicas alternativas que sejam capazes de fortalecer a capacidade de desenvolvimento local sustentável e preservar biomas dentro do sistema da moda. 

É o caso da Seringô, um projeto desenvolvido pelo Polo de Proteção da Biodiversidade e Uso Sustentável dos Recursos Naturais – Poloprobio e a Cooperativa de Produção de Ecoextrativistas da Amazônia – Coopereco, duas instituições agroextrativistas que atuam juntas há quase 30 anos na região amazônica nos estados do Pará, Amazonas, Acre, Tocantins e Rondônia, em municípios com os menores IDH do Brasil. Em parceria com extrativistas e suas organizações de base criam produtos agroecológicos para a moda e decoração com técnicas simplificadas que podem ser realizadas localmente em pequena escala e com poucos recursos. 

Uma construção coletiva que envolve uma tecnologia social certificada para os encauchados (borracha natural produzida em seringais nativos) e o conhecimento técnico-científico da vulcanização (processo de transformação desse látex). Essas organizações representam um enorme contingente, de aproximadamente 5.000 pessoas, que são organizadas e mantidas por práticas democráticas e transparentes. 

Uma atividade tradicional, o extrativismo, está na identidade dessas pessoas. Os seringueiros possuem seus próprios negócios e são associados à cooperativa, compartilhando os resultados financeiros. Isso significa que eles não precisam mais se envolver em atividades predatórias (como vender madeira) ou migrar para outras regiões para garantir sua renda – o que mantém a floresta, de onde tiram seu sustento, em pé. Os seringueiros são uma parcela “invisível” da sociedade que vive longe dos centros urbanos em meio à vegetação amazônica. Serviços básicos como saúde, educação, comunicação e políticas públicas mal chegam até eles, que são verdadeiros guardiões da floresta contra invasões e desmatamentos. 

Esses grupos, que vivem em regiões que normalmente cultivam matérias-primas a preços baixos e commodities agrícolas de grandes indústrias, como a da moda, conseguiram manter todos os processos em suas próprias mãos. Eles desenvolveram não só uma tecnologia social, mas uma cadeia produtiva para a borracha, cujo produto não é um commodity, em que cada quilo de borracha preserva 1 hectare de floresta. O composto à base de látex, que seria processado na indústria, é naturalmente desidratado e transformado em borracha vegetal no próprio local, em unidade de produção familiar, por meio de moldes artesanais, sem a necessidade de energia elétrica, máquinas ou estufas. 

O modelo de produção familiar tem proporcionado às mulheres renda própria por meio do artesanato feito em casa, permitindo a elas dar continuidade às atividades domésticas, além de se dedicarem a outras atividades como a colheita de açaí, cultivo de banana e mandioca e produção de farinha, enquanto os maridos se encarregam da extração e produção do látex. Essa garantia de renda às mulheres traz independência financeira, agora elas têm conta em banco, não dependem somente dos trabalhos e rendas de seus maridos e podem comprar o que querem para elas, para seus filhos e casas. 

Com isso, há também uma mudança muito grande de comportamento nesses lares, o que, inicialmente, não agradou aos homens, já que o trabalho ocupava suas esposas e algumas delas passaram a ganhar mais do que eles. Foi necessário criar um acordo em que as mulheres não precisariam mais sair de casa para trabalhar e assim executar as tarefas em suas terras e os afazeres domésticos. 

Conversei bastante o Francisco Samonek, presidente do Poloprobio, e com a Zélia Damasceno, presidente da Coopereco e para organizar uma ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> class="s1">roda de conversa e depois um artigo e aprendi muita coisa com eles. Aprendi, por exemplo, que o fomento à liderança e ao protagonismo feminino contribui para o sucesso do projeto e melhora, não só da vida das mulheres, mas da comunidade em geral, incluindo jovens. 

Há um esforço de inserir, principalmente as meninas das comunidades no processo de produção para evitar que elas precisem se deslocar para cidades grandes em busca de oportunidades de emprego e estudo, o que nem sempre ocorre como o esperado, colocando-as em situação de vulnerabilidade. Para isso, foi criado um programa de biojoias que, inicialmente, incluiu cerca de 60 jovens, entre 14 e 17 anos, filhas das artesãs (meninos também são bem-vindos). 

Marizeli Mendes, artesã e multiplicadora das tecnologias sociais para o desenvolvimento dos produtos artesanais define que “o bom do projeto é isso: plantar a semente da mudança para que no futuro as famílias tenham renda e os jovens estejam em casa, sem ter que sair por falta de trabalho.” A responsabilidade intergeracional e com o futuro, trazida pela participação das mulheres no projeto, também é um aspecto importante desse arranjo de formação e trabalho. 

Atentar ao papel e o espaço ocupado pelas mulheres em suas organizações, a partir de práticas institucionalizadas voltadas para a promoção de justiça social e ambiental, é um importante passo se quisermos falar de produção justa e comércio de matérias-primas e produtos de moda que garantam a segurança alimentar, a manutenção dos biomas locais e a igualdade. Se onde tem floresta em pé, tem mulher, não podemos desatrelar a luta pela justiça de gênero da defesa de territórios, dos recursos naturais e do clima. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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