Prestes a entrar na década de 2020, o mundo ocidental – em especial a sua indústria cultural – segue comemorando o êxito de suas produções fictícias ou baseadas em fatos reais ambientadas num “país chamado África”.
Não adianta: por mais que nessa multiforme extensão espacial de 30 milhões de km2 habitem mais de um bilhão de habitantes das mais diversas etnias e nações, distribuídos em mais de 50 países, prevalece ainda, para o Ocidente, a oportuna e fantasiosa construção generalista que trata a África como um bloco homogêneo.
A generalização é uma operação tentadora que se faz presente não apenas na indústria cultural, mas também na ciência e na imprensa ocidentais. Em nenhum outro lugar do mundo as partes parecem ser tão explicativas do todo: as transformações de ordem climática na savana de Botsuana passam a explicar toda a natureza africana, a queda de um ditador no Zimbabwe passa a explicar toda a política africana, os investimentos chineses em infraestrutura no litoral nigeriano passam a explicar toda a lógica das relações exteriores africana. Nessa lógica presente, as particularidades são inconcebíveis e tudo se torna “algo em algum lugar da África”.
Verdadeiro constructo ideológico que se desenvolve desde a colonização europeia, no século 19, o “país chamado África” é entendido e representado dentro de três perspectivas fundamentais.
A primeira delas é notoriamente um resquício das literaturas coloniais. Trata-se de um espaço da natureza selvagem, retratado por inexploradas savanas, florestas, desertos, rios e lagos, nos quais uma rica e diversificada fauna de pesados mamíferos vivem em harmonia com o meio. Leões e outros bichos protagonizam histórias voltadas ao publico infantil, embora consumidas também por adultos saudosos. A figura humana nessas representações é praticamente inexistente ou aparece discretamente integrada à paisagem, junto aos animais e plantas.
É nessa África que nós, ocidentais, vestimos o chapéu, a bota e a calça de sarja para fazermos os safáris.
A outra representação diz respeito às culturas exóticas do continente, que são observadas em práticas religiosas estranhas, hábitos alimentares curiosos e línguas impronunciáveis para o universo latino e anglo-saxão. Da cultura material sagrada de vários desses povos saem obras de arte que servirão de atestado de cosmopolitismo para habitats não africanos.
É nessa África que nós, ocidentais, assistimos como antropólogos do século 19 aos festivais religiosos e musicais.
Por fim, tem-se a representação mais explorada: a da tragédia humana. Ela seria, por sua vez, um produto da suposta política desequilibrada das lideranças do continente que, geralmente, são entendidos como sujeitos corruptos, autoritários e violentos; os verdadeiros responsáveis pela explosão de sangrentos conflitos. Nos filmes documentários ou nas matérias de jornal, boa parte do ocidente questiona-se atônita: “mas como é que podem eles [os negros africanos] estarem matando uns aos outros?”.
Soma-se a essa tragédia a disseminação de doenças como a Aids e o ebola, anunciada em dados estatísticos que raramente fazem inferências regionais. Há ainda a fome, que assola a realidade africana em função das incontroláveis secas, produzidas pela supramencionada natureza selvagem.
É nessa África que nós, ocidentais, pegamos nossas câmeras fotográficas para registrar toda a benevolência de nossas almas em nossos trabalhos voluntários.
A bem da verdade, o que “país chamado África” revela é que existe a necessidade do Ocidente avançar e sofisticar em suas elaborações da indústria cultural, assim como em suas produções científicas e na qualidade das notícias que sua imprensa produz e difunde nos meios de comunicação.
Assim como entender a Albânia não é suficiente para explicar a Europa, entender Seychelles não é o suficiente para entender a África.
Atentar às particularidades de um determinado lugar e, a partir disso, buscar entender sua relação com escalas geográficas mais amplas é o esforço de complexidade contrário à tentadora e redutora generalização.
Esse esforço precisa ser feito para dividir o “país chamado África” em seus territórios reais, com suas especificidades produzidas pela dialética do processo histórico. As unidades políticas verdadeiras devem ser buscadas, com ou sem leões.
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