Drauzio Varella

[email protected]

Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

cadastre-se e leia

O Nobel de 2022

Como o paleogeneticista sueco Svante Pääbo conseguiu sequenciar fragmentos de DNA de um Neandertal

Foto: Reprodução
Apoie Siga-nos no

Um Neandertal jamais poderia imaginar que sua espécie seria extinta. Menos ainda, que fragmentos de DNA recuperados nos ossos fossilizados de um dos seus dariam o maior prêmio da Ciência a Svante ­Pääbo, centenas de milênios mais tarde.

Alheio às expectativas dos ­Neandertais, Svante Pääbo, paleogeneticista do Instituto Max Planck de Antropologia ­Evolutiva, na Alemanha, conseguiu sequenciar fragmentos de DNA encontrados em fósseis que viveram antes que o Homo sapiens sonhasse colocar os pés na Terra.

Os estudos pioneiros realizados em seu laboratório permitiram sequenciar o genoma dos Neandertais e levar à descoberta de um novo grupo de ­hominídeos classificados como Denisovano.

A análise do fluxo de genes entre populações de hominídeos que nos antecederam criou a possibilidade de traçar as migrações desses grupos pelos continentes e nos deu acesso a aspectos da fisiologia humana moderna, como a formação do sistema imunológico e os mecanismos de adaptação da vida às grandes altitudes.

Reunir a tecnologia que conduziu ao isolamento do DNA de um Neandertal que viveu 430 mil anos atrás, onde hoje é a Espanha – o mais antigo de todos já obtidos –, revolucionou a paleogenética e os conhecimentos sobre o passado remoto da nossa espécie.

O grande mérito de Pääbo e de seu grupo foi o de aprimorar técnicas de análise desse DNA que sobreviveu até nós lesado por milhares de anos de exposição às intempéries do ambiente, à contaminação por sequências genéticas de microrganismos e à manipulação humana. Esse trabalho criterioso levou à publicação do sequenciamento completo do genoma Neandertal, em 2010.

Talvez a consequência mais surpreendente dessas pesquisas tenha sido a confirmação de que Neandertais e Sapiens se acasalaram, hipótese que nunca havia sido comprovada. De 1% a 4% dos genes dos humanos modernos de ascendência europeia e asiática vieram dos Neandertais.

As técnicas padronizadas por Pääbo também foram empregadas para identificar as origens dos ossos de um dedo da mão de um indivíduo que viveu no sul da Sibéria há 40 mil anos. O DNA isolado desse dedo encontrado numa caverna em 2008 mostrou que não teria pertencido nem a um Neandertal nem a um Homo sapiens, mas ao novo grupo de hominídeos denominado Denisovano, em referência à caverna na qual os ossos foram desenterrados.

Hominídeos arcaicos que viveram na Ásia também se acasalaram com esse grupo. Fragmentos de DNA Denisovano podem ser encontrados nos genomas de bilhões de mulheres e homens modernos, numa demonstração de hibridismo humano.

Para dar ideia da complexidade dos estudos paleogenéticos, o próprio Pääbo concluiu que, no início das pesquisas, o DNA recolhido de uma múmia egípcia continha traços do DNA dele mesmo, que contaminara inadvertidamente os espécimes manipulados.

De fato, durante os anos 1980 e 1990, as dúvidas sobre a possibilidade de contaminação do DNA de hominídeos arcaicos com genes humanos, ou de microrganismos, retardaram os avanços nessa área. Foram os métodos desenvolvidos nos laboratórios de Pääbo e a descrição das novas técnicas de sequenciamento que resolveram esse problema.

As pesquisas de Pääbo e seus colaboradores com material genético de ­Neandertais, Denisovanos e outros hominídeos tiveram repercussão na medicina moderna e fizeram jus ao Nobel. Embora seja pequena a proporção de DNA arcaico no genoma humano, esse material tem implicações no risco de desenvolver doenças que vão da esquizofrenia ao de apresentar Covid-19 grave. Pessoas que vivem em grandes altitudes no platô do Tibete devem aos Denisovanos os genes responsáveis pela adaptação ao ar rarefeito.

Em entrevista à revista Nature, o paleogeneticista Johannes Krause, também do Max Planck Institute, diz que, com diversos genomas de Neandertais e Denisovanos à disposição dos pesquisadores, agora será possível identificar genes unicamente humanos, como aqueles ligados ao crescimento mais rápido de neurônios, que ocorre nos organoides cerebrais cultivados em laboratório, presente apenas no Homo sapiens.

O fato de que uma parcela significativa da população atual carrega genes de hominídeos de um passado distante vai nos ajudar a explicar quem somos e de onde viemos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Nobel de 2022 “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo