Luciana Boiteux

Advogada, professora da UFRJ, pesquisadora feminista e antiproibicionista, militante dos Direitos Humanos

Opinião

O negacionismo do uso terapêutico da maconha foi derrotado no CFM. Por enquanto

O cenário é ainda de uma disputa que não está ganha, mas a recente vitória é um marco da vitória da ciência e da razão sensata e humanitária

Foto: Maj Will Cox
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Na semana passada, fomos surpreendidas por uma inusitada resolução do Conselho Federal de Medicina que restringiu a prescrição de CBD para apenas dois tipos de epilepsia (Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e Complexo de Esclerose Tuberosa), retrocedendo nos marcos (ainda limitados) da regulação da cannabis medicinal até então vigente, que admitia a prescrição de CBD de forma mais ampla, para “epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais”.

Além disso, a novel resolução vetava ao médico a “prescrição da cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol”, restrição que não estava prevista antes e que interdita avanços importantes nos usos terapêuticos da maconha. Mas talvez o mais grave efeito dessa nova resolução, que foi revogada na última segunda-feira 24, tenha sido a colocação em risco de milhares de pacientes (muitos deles crianças) que poderiam ter seu uso descontinuado, diante das ameaças de processo disciplinar contra médicos prescritores nos estados em caso de descumprimento da resolução.

Indo mais além na negação da ciência, o CFM ainda proibiu “médicos de ministrarem palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico”.

​​Portanto, deve ser comemorada a revogação da referida resolução pelo próprio Conselho Federal de Medicina, voltando a valer a anterior, que abriu espaço para uma nova e ampla Consulta Pública, a ser realizada até 23.12, com a participação não só de médicos e especialistas, mas da população em geral.

É necessário que se diga que a normativa revogada era inconstitucional pela violação do direito à saúde previsto no art. 196 da CF/88, além de contrariar frontalmente o Código de Ética Médica, que atribui ao médico a obrigação de “aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.”, se localizando na contramão das evidências científicas, que apontam para diversos outros usos que foram vetados, ameaçando a vida e a saúde de pacientes (muitas crianças inclusive), que necessitam da continuidade da medicação.

O fato é que são muitos os usos terapêuticos da cannabis reconhecidos em vários países do mundo, que integram uma avançada e promissora política de saúde, verdadeira revolução na medicina. Enquanto isso, o CFM tentou ignorar os avanços da ciência em relação ao uso do canabidiol e de outros derivados da maconha medicinal para o tratamento de mais de 20 condições médicas, como Transtorno do Espectro Autista, depressão, dor crônica, esclerose múltipla, efeitos colaterais da quimioterapia, apneia, parkinson, psoríase, alzheimer, fibromialgia e ansiedade.

Este proibicionismo estéril verificado na revogada resolução do CFM revela as disputas internas na instituição, entre negacionistas e bolsonaristas de um lado, e médicos comprometidos com o juramento de Hipócrates e com a dignidade humana e a Constituição de outro. Oportuno lembrar que este mesmo CFM que tentou restringir a prescrição do canabidiol – que já deveria inclusive ser oferecido pelo SUS -, negando autonomia aos médicos, foi quem deu autonomia para os médicos receitarem cloroquina, vermífugo, entre outros remédios sem comprovação de resultado para a Covid-19.

Acreditamos que este movimento pela revogação, fruto da forte mobilização de associações, pacientes, familiares e médicos contra o obscurantismo e o negacionismo, e a abertura de Consulta Pública sobre o tema poderá levar a avanços nos debates públicos, visando a ampliação da oferta do medicamento e nos fazer avançar no reconhecimento da eficácia do tratamento com o canabidiol e outros derivados da cannabis, já comprovados por evidências e estudos internacionais e nacionais.

O cenário é ainda de uma disputa que não está ganha, mas a recente vitória é um marco da vitória da ciência e da razão sensata e humanitária, contra o negacionismo canábico e da anticiência, fruto de alianças de certa facção de médicos com esse governo irresponsável que atua com uma política de morte. Não aceitaremos mais nenhuma ameaça à Constituição, à ciência, à dignidade e aos direitos humanos e iremos permanecer vigilantes contra os retrocessos e ameaças à saúde e à dignidade da população brasileira.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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