Gilberto Maringoni

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O mundo é outro

A diplomacia brasileira, enfraquecida, enfrentará desafios diferentes de 20 anos

O mundo é outro
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A China de Jinping e os EUA de Biden reeditam a Guerra Fria, mas a primeira está em melhores condições do que a antiga União Soviética - Imagem: Saul Loeb/AFP
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A eleição de Lula altera o panorama político da América Latina e as perspectivas para o futuro imediato. “O clima do País mudou”, afirmou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. A frase, que guarda forte dose de subjetividade, parece estender-se além-fronteiras. “As pessoas ao redor do mundo estão esperando que você não apenas salve a Amazônia, mas também salve o planeta”, escreveu na New Yorker o jornalista estadunidense Jon Lee Anderson, ao relatar uma conversa com o ex-presidente, logo após sua vitória. ­Anderson, autor, entre outros, do alentado Che, Uma Biografia, não parece exagerar. Em um cenário carente de lideranças globais de envergadura, à exceção talvez de Xi Jinping, Vladimir Putin e do papa Francisco, Lula destaca-se. É o único entre os quatro que foi eleito de forma livre e direta pela população.

Diferentemente do panorama de duas­ décadas atrás, quando Lula chegou ao Planalto pela primeira vez, o unilateralismo de Washington não reina absoluto diante de uma Rússia devastada pelos anos Yeltsin e uma China que começava a se colocar como ator internacional de envergadura. A guerra ao terror desviara o foco do Departamento de Estado para ações no Oriente Médio, Iraque e Líbia em especial, e Afeganistão. A América Latina, secundarizada pela diplomacia imperial, encontrou aí a oportunidade de criar laços de confiança entre países que elegiam governos marcados por um vago discurso antiliberal e colocavam agendas sociais no centro de suas ações, formando o que, imprecisamente, se denominou onda rosa. O reiterado êxito eleitoral das administrações do PT, dos ­Kirchner, de Hugo Chávez, de Evo Morales, de ­Rafael Correa e da Frente Ampla uruguaia deu-se a partir de políticas públicas tornadas possíveis pela alta dos preços das commodities entre 2004 e 2014, o que favoreceu o balanço de pagamentos de cada um, até a emergência da crise de 2008.


GILBERTO MARINGONI. Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb).

Tais administrações enfrentaram um paradoxo. Alegaram buscar distância das diretrizes econômicas mercadistas, esboçaram maior ativismo estatal, reafirmaram as soberanias nacionais, mas não lograram alterar estruturalmente o panorama econômico e social de seus países. Aplicaram programas pontuais de socorro à pobreza, sem projetos estruturantes de um novo modelo de desenvolvimento.

A política externa dos dois primeiros governos Lula caracterizou-se por sua postura desenvolvimentista e multilateralista. O País teve uma aproximação intensa com a África, a Ásia e os países árabes, consolidando a universalização da política externa brasileira.

Há duas décadas, os principais parceiros comerciais do Brasil eram, pela ordem, Estados Unidos, Argentina e China. Os termos da equação praticamente se inverteram e a sequência agora compreende a primazia da China, seguida de Estados Unidos e Argentina. Embora sigamos com crescentes superávits na balança comercial, há uma preponderância absoluta de commodities agrícolas e minerais na pauta das exportações. A situação indica perda de competitividade e consolida uma tendência reprimarizante, o que fortalece o caráter periférico da economia nacional. A isso se soma a aprovação do teto de gastos, em 2016, que condena o País a um ajuste fiscal permanente, impossibilitando qualquer política desenvolvimentista consistente. O Brasil fica aprisionado à condição de importador de manufaturados, o que reduz os horizontes da política externa.

O BRASIL ESTÁ APRISIONADO À CONDIÇÃO DE IMPORTADOR DE MANUFATURADOS, O QUE REDUZ OS HORIZONTES DA POLÍTICA EXTERNA

O País exerceu, nos anos Lula, um papel de crescente influência global, buscando ter voz nos organismos multilaterais e colocando-se como articulador na conformação do G-20 e do BRICS. Sem liderar propriamente uma tendência alternativa, buscou, no entanto, ocupar os limites do sistema internacional como um articulador continental decisivo e presença qualificada entre os países do Sul global. Apesar de ter mantido a histórica bandeira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, para o qual as chances de êxito são reduzidas, soube adaptar essa demanda para uma justa reivindicação pela democratização das instâncias de poder mundial.

A situação atual é qualitativamente distinta. O mundo é pautado por um enfrentamento entre EUA e China, que começou como guerra comercial no governo Trump e avança para o de disputa geo­política de envergadura. No documento oficial Estratégia de Segurança Nacional, divulgado no início de outubro, a Casa Branca demonstra que Moscou e Pequim estão cada vez mais alinhados entre si, apesar de terem desafios distintos. Enquanto a Rússia “desrespeita de forma imprudente as leis básicas da ordem internacional”, a China “é (nossa) única concorrente que tem a intenção de remodelar a ordem internacional, incrementando (seu) poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para alcançar tal objetivo”. Ou seja, de concorrente no mercado o país asiático passa à condição de inimigo estratégico, numa reedição torta dos termos da Guerra Fria. Ambos os lados pressionam os países da periferia a alinhamentos nítidos. Nesse quadro delicado, o Brasil precisará exercer a um só tempo neutralidade e protagonismo diante do novo conflito Leste-Oeste.

Boric e Petro, novos protagonistas do campo progressista na América do Sul – Imagem: Presidência da Colômbia

Desde o golpe parlamentar de 2016, os governos que sucederam àquele de ­Dilma Rousseff utilizaram de forma limitada a política externa como instrumento estratégico para o desenvolvimento interno. O que se viu, especialmente a partir de Bolsonaro, foi a subordinação da diplomacia a acenos ideológicos à extrema-direita global. O Brasil dos últimos seis anos retraiu sua capacidade de intervenção, abdicou de participar de organizações como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), retraiu sua presença no BRICS e no Mercosul e criou arestas em organismos da ONU, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Comissão de Direitos Humanos. A expressão síntese dessas iniciativas foi proferida pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020, ao se vangloriar de o País ter se isolado a ponto de ocupar a posição de pária global.

Quais as perspectivas para os próximos quatro anos? Os sinais regionais são dados por vitórias importantes da centro-esquerda na América Latina, seguidas por turbulências preocupantes nas economias locais. Em 2018, Andrés ­Manuel López Obrador chega à Presidência do México, seguido pelo retorno do peronismo à Casa Rosada, com Alberto Fernández. O país enfrenta agora uma grave crise financeira, com alta inflacionária e desaceleração econômica. As eleições presidenciais bolivianas, em outubro de 2020, na prática, reverteram o golpe de Estado de 2019, com o êxito de Luis Arce. A essas mudanças podemos agregar a eleição de Pedro Castillo no Peru, em junho de 2021. O futuro de sua gestão é para lá de incerto. Castillo não tem maioria parlamentar e seu partido, Peru Livre, rompeu há meses com a administração federal, gerando uma interminável sucessão de crises.

As grandes mobilizações de 2019 e 2020 no Chile resultaram na convocação e na eleição de uma Assembleia Constituinte e na vitória de Gabriel Boric, em 2021. Dificuldades na gestão política e ofensiva conservadora levaram o governo à derrota estratégica no plebiscito da nova Constituição, em setembro último. Na Colômbia, quase três meses de maciços protestos, no primeiro semestre de 2021, foram decisivos para a surpreendente vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez, em junho de 2022.

NA DISPUTA ENTRE EUA E CHINA, O BRASIL PRECISARÁ EXERCER A UM SÓ TEMPO NEUTRALIDADE E PROTAGONISMO

O continente foi duramente atingido por mais de dois anos de pandemia. Segundo levantamento da agência Reuters, no fim de 2021, mais de 1,5 milhão de latino-americanos haviam perdido a vida em decorrência da doença e quase 50 milhões tinham sido infectados. No mundo todo, os óbitos alcançaram 5,35 milhões. Com 11,7% da população planetária, a região exibia quase 30% das mortes. No início de julho último, o total de óbitos passava de 1,7 milhão. Diante desse panorama, a vitória da coalizão liderada pelo PT torna-se fator de equilíbrio nas instabilidades vividas pela vizinhança.

A política externa do novo mandato de Lula será definida pelo filtro da grande frente que o levou à Presidência. A retomada de uma atualizada política externa altiva e ativa, para citar o termo cunhado pelo ex-chanceler Celso ­Amorim, reside fundamentalmente na adoção de diretrizes pautadas no quarteto soberania-desenvolvimento-democracia-meio ambiente. Aqui não há invenção: tais pontos estão fixados na Constituição de 1988. Em seu artigo 4º, a Carta define que as nossas relações internacionais são regidas, entre outros, pelos seguintes princípios: defesa da paz, dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, da não intervenção, da solução pacífica dos conflitos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da integração da América Latina. O grande tema pautado pelo bolsonarismo, a entrada na OCDE, possivelmente será colocado na geladeira, dadas as exigências econômicas e fiscais do acordo.

Embora nem sempre a correspondência entre desenvolvimento interno e relações internacionais seja automática, é preciso levar em conta as condicionantes domésticas diante de um mundo em que o mercado de energia pode estar sofrendo uma mudança estrutural, a partir da guerra da Ucrânia, com decorrências inflacionárias vindas de fora e retração econômica nos países centrais a partir do ano que vem.

A recondução do Brasil a uma posição de destaque na cena mundial deverá envolver, entre outras, as seguintes iniciativas:

Por causa do Brasil, a América Latina tornou-se o epicentro da Covid-19. Ernesto Araújo cumpriu a promessa de nos deixar na posição de párias – Imagem: Silvio Avila/HCPA e MRE/Arquivo

1. A construção de uma pauta convergente para questões do clima e do meio ambiente entre os países da América do Sul. A Amazônia possui a floresta tropical mais extensa do mundo e atravessa nove países (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana F­rancesa, ­Peru, Suriname e Venezuela). O território brasileiro abrange sua maior parte (61,8% do bioma), mas é, proporcionalmente, o que tem menor território protegido: apenas 42,2%, divididos em espaços indígenas e áreas naturais protegidas.

2. A integração das políticas de saúde pública na região, que concentrou, proporcionalmente, os mais altos índices de infecção e morte ao longo da pandemia de Covid-19.

3. O fortalecimento do Mercosul e da Celac e a reconstrução da Unasul como instâncias políticas, econômicas e especificamente comerciais.

4. Reatamento e reconstrução das relações diplomáticas com a Venezuela e reintegração do país aos organismos regionais. Não é possível que o Brasil siga na situação de virtual rompimento institucional com um vizinho que possui 2,2 mil quilômetros de fronteira.

5. A reconstrução do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social como ferramenta para a internacionalização das empresas brasileiras e retomada da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

O Brasil concentra quase 40% do PIB e cerca de 25% da população da América Latina e tem a chance de superar uma triste e destrutiva quadra de sua história, vivida nos últimos seis anos. Não à toa, a expectativa externa com a eleição de Lula rivaliza com as esperanças domésticas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O mundo é outro”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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