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O modo de vida europeu precisa ser defendido?

Consigo identificar a extrema-direita quando a vejo. “Proteger o nosso modo de vida” são palavras escolhidas para agradar à extrema-direita

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A nova presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, decidiu propor uma nova pasta governamental, a que chamou de “proteção do nosso modo de vida europeu” e que incluirá os assuntos relativos à imigração e segurança interna. Problema número 1, a associação entre as duas pastas tem um significado político claro: a imigração passa a ser questão de segurança. Problema número 2, a designação não quis deixar nenhuma dúvida de interpretação e assegurou-se que o recado seria entregue em toda a sua plenitude – a imigração é não só um problema de segurança, mas também uma ameaça ao “modo de vida europeu”, que deve ser devidamente “protegido” pela política de segurança europeia.

Digamo-lo sem rodeios: esta decisão política representa uma obscena mudança na cultura política do projeto europeu e uma consequente negação do que este tinha de melhor. Há para aí quem aposte na desqualificação da inteligência dos outros e insista que o nome da pasta nada significa – seriam apenas palavras. Sim, são só palavras, mas nós sabemos como tudo, na política, começa pelas palavras. Não, não é uma falsa polêmica. Trata-se de uma óbvia e deliberada concessão institucional à agenda política da extrema-direita.

Nunca a tradição política europeia teve compromisso com a defesa de uma determinada cultura, mas com a defesa da diversidade cultural. Nunca os Estados europeus defenderam um modo de vida, mas protegeram todos os modos de vida que respeitem as leis europeias. 

Von der Leyen, correligionária de Merkel, cede à pressão da extrema-direita europeia (Foto: FREDERICK FLORIN / AFP)

A única cultura que a Europa defende – aquela que é, no fundo, a sua identidade – é a cultura iluminista da defesa dos direitos individuais, da dignidade humana e da democracia. Essa cultura não impõe um modo de vida, mas, ao contrário, defende-nos de quem nos queira impor um modo de vida. Esta é, no fundamental, a questão política que emerge da escolha destas palavras. E é uma questão muito séria.

Na verdade, esta deriva não é de agora. Vem de longe. Nasceu na crise econômica e cresceu com os refugiados, que morreram aos milhares no mar na tentativa de chegar à Europa. Eles são as mais recentes vítimas de 18 anos de guerra ao terror que, em vez de o combater, acabou por espalhá-lo, até bater à porta da Europa. As novas leis de segurança, entretanto, aprovadas em todo o Ocidente, trouxeram a proliferação de novas agências estatais de informações, mais operações secretas estatais e o aumento da vigilância e controle policial. Pela primeira vez desde o início do projeto europeu, a exploração do medo – do terrorismo e dos refugiados – encorajou movimentos políticos que sempre olharam as liberdades públicas como a fonte dos problemas. A conversa política passou então a resvalar para a ideia de que é preciso abdicar de um pouco de liberdade em troca de um pouco mais de segurança. É um clássico. Quem tem o mínimo de consciência histórica sabe, no entanto, que nunca existirá segurança sem liberdade e não o contrário. O que tudo isto significa, digo-o medindo as palavras, é um movimento escorregadio que lentamente acabará por transformar os Estados Democráticos em Estados de segurança e de vigilância. A nova pasta governamental chamada de “proteção do nosso estilo de vida” é só mais um marco neste caminho. Esta é a tragédia europeia. E um desastre para a sua reputação internacional.

A região sempre se destacou pela defesa da diversidade cultural, dos direitos individuais e da democracia

Muitos dos meus amigos brasileiros acreditam que estes ventos autoritários estão em refluxo na Europa e em breve recuarão nos Estados Unidos. Talvez. Bem-vistas as coisas, estamos longe da catástrofe política brasileira. Aqui na Europa, nenhuma autoridade pública faz apelo ao uso da força letal por parte da polícia, a não ser nos casos extremos em que está em causa a defesa da vida. Aqui não vemos governadores aos pulinhos, celebrando a morte seja de quem for. Aqui não temos ministros que propõem “excludentes de ilicitude” para policiais, sabendo que isso significa um descarado incentivo ao uso de armas de fogo. Todavia, não se enganem, também temos as nossas Ágathas, que não morreram com tiros da polícia, mas morreram nas praias mediterrâneas, com a polícia e os governantes a olhar para o lado. A olhar para o lado! Também temos as nossas fotografias de crianças mortas que envergonham um projeto político que nasceu baseado nos valores universais da paz, da democracia e da defesa dos direitos individuais. É esse ideal que é ameaçado quando a política começa a falar de “proteção do nosso modo de vida”.

Para quem me lê no Brasil, o que tenho a dizer é que o problema europeu não é apenas o Brexit, nem Salvini, nem Orbán, nem Le Pen. São eles, mas também quem com eles colabora e quem com eles faz compromissos. Eles e esta insuportável burocracia europeia, este “governo de funcionários” que, com as habilidades de linguagem em que se especializaram, nos quer convencer que o que está escrito não é exatamente o que está escrito. Não, nada nisto é inocente. Nada disto é uma “infeliz escolha semântica”. Obrigado, mas consigo identificar a extrema-direita quando a vejo. “Proteger o nosso modo de vida” são palavras escolhidas para agradar à extrema-direita. Acontece que adotar essa retórica não ajuda ninguém – a não ser a extrema-direita. 

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