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O mercado de apostas

Não é surpreendente que a paixão futebolística tenha sido apropriada e domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico

O mercado de apostas
O mercado de apostas
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
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As casas de apostas invadiram o espaço do futebol para metamorfosear a paixão dos apaixonados em ganância dos obcecados. Para buscar seus propósitos, não vacilaram em usar todos os instrumentos disponíveis da mercantilização acelerada. Mandam brasa nas emissoras de tevê, nas redes sociais. Mobilizam ­youtubers e influencers.

Fosse apenas marketing e propaganda, os sites de apostas estariam perdoados, mas a investida foi além. Atletas do ludopédio foram cooptados para favorecer apostadores. Nada surpreendente. Em outros tempos, o Totocalcio provocou danos no campeonato italiano. No começo dos anos 80 do século passado, as malfeitorias envolveram clubes, jogadores e dirigentes. Milan e Lazio foram rebaixados e o algoz da Seleção Brasileira no Mundial de 1982, Paolo Rossi, foi suspenso por três anos. A pena foi reduzida para que ­Rossi estivesse presente na Copa do México.

No Brasil, o futebol já sofreu com a praga das apostas.  No Campeonato Brasileiro de 2005, os apostadores se aprestaram em subornar árbitros. Edilson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon usaram o apito para escamotear os resultados das partidas. A intermediação da malfeitoria era incumbência de um certo Nagib Fayad, também conhecido como Girão. Os “vendidos” recebiam 10 mil reais por jogo fraudado (vendido era uma expressão habitual dos torcedores indignados com o mau desempenho de um jogador do seu time).

No episódio que ora nos atormenta – informa o UOL – mais de 60 jogadores já foram citados de alguma forma na investigação. De acordo com o Ministério Público de Goiás, as apostas eram feitas em sites como Bet365 e Betano. A propina correu solta em estados como São ­Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás, entre outros

Leio na mídia: o jogador Eduardo Bauermann, do Santos, comprometeu-se a tomar cartão amarelo em duas partidas. Não cumpriu o combinado. Bruno Lopez, o líder da organização criminosa responsável pela promoção das maracutaias, explicou o esquema…

“O do Santos não tomou, Eduardo Bauermann. Meu sócio caiu para lá, pai. Ele está caindo lá para Santos para trocar umas ideias. Ontem ele trombou o cara no hotel, levou dinheiro na mão do cara, olhou na cara, trocou ideia e o maluco não fez. Entendeu? Sabendo como funciona, que é muito dinheiro envolvido e ele não fez, irmão. Então, é muito mais fácil ele arrumar um jogador para fazer a parada acontecer, senão o bagulho vai ficar pesado para ele.”

O futebol é o esporte das multidões. Hoje em dia, quase tudo que se relaciona com ele recebe o toque do prestígio, do poder ou do dinheiro. Antigamente, nos tempos do velho profissionalismo, imperava o prestígio. Não raro, o poder. O dinheiro, salvo as conhecidas e escandalosas exceções, corria dos bolsos dos cartolas para os cofres dos clubes. Nos anos dourados do futebol brasileiro, entre o fim dos anos 50 e o início dos 60, a coisa era assim. Ainda me lembro do ex-presidente do Palestra Mário Frugiuele exibindo o seu cheque pessoal, usado na compra do passe de Chinesinho. Vicente Mateus, então presidente do Corinthians, contratou ­Almir com o dinheiro da sua conta bancária.

Depois da recente invasão dos critérios capitalistas na gestão esportiva, o dinheiro corre de lá para cá, de cá para lá. Chamam isso de modernidade, progresso, novo profissionalismo. Se estou certo nas contas, a progressiva submissão da atividade humana ao comando despótico do dinheiro vem ocorrendo há pelo menos dois séculos.

Não é de espantar que tenha chegado a hora do futebol. Esporte preferido pelas multidões globalizadas, o futebol transformou-se num grande negócio. Perceba o leitor que isso aconteceu depois que a televisão assumiu o comando do espetáculo à escala planetária. Aí, sim, o futebol passou a ser um excelente veículo de marketing, manejado e patrocinado por empresas que operam em muitos mercados.

A partir de meados dos anos 80, o mercado do futebol foi globalizado. O agente principal da globalização foi a universalização dos torneios e competições, promovida pelas redes privadas de televisão. Essa maior integração não só envolveu a aproximação, ainda que não a igualdade, dos padrões salariais, dos valores das transferências, mas, sobretudo, atraiu grandes empresas para o “Maior Espetáculo da Terra”.

Não é surpreendente que a paixão dos apaixonados tenha sido apropriada e domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico. Afirmo que não se trata de embuste, de uma falsificação das finalidades “verdadeiras” do futebol, senão de uma forma de ser, de um modo de existência do entretenimento contemporâneo. Trata-se da apropriação pelo mercado do tempo livre dos cidadãos. •

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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