Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O massacre da Lapa, tantos anos depois

Foi perto do Natal, bem cedinho, 7 horas da manhã. Era quinta-feira 16 de dezembro quando militares da ditadura invadiram uma casinha cinza

Foto: Arquivo pessoal
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A China perdeu Mao Tsé-tung e Chou En-lai e prendeu Chiang Ching, a viúva do Mao. O socialismo chegou a Portugal pelas mãos de Mário Soares. O mistério foi desvendado com a morte de Agatha Christie. A ditadura chegou à Argentina pelas mãos de ferro de um general chamado Jorge Rafael Videla. A França perdeu um grande intelectual, André Malraux. O Brasil ficou sem dois ex-presidentes: o exilado João Goulart, vítima de um enfarto fulminante em sua fazenda em Mercedes, e o cassado Juscelino Kubitscheck, que morreu no meio do caminho, entre São Paulo e o Rio de Janeiro.

Nos Estados Unidos, o doutor Lee Taylor, do Conselho de Qualidade Ambiental, alertou o mundo: “Se não dermos um basta ao massacre de animais, em 30 anos o homem será o único mamífero da face da Terra”. Em Toronto, um grupo de esquimós, uma espécie de sem-gelo, fez um protesto exigindo 64 milhões de hectares de terra do Canadá.

Mas o ano de 1976 terminou com uma notícia trágica. Foi perto do Natal, bem cedinho, 7 horas da manhã. Era quinta-feira 16 de dezembro quando militares da ditadura invadiram uma casinha cinza de número 767 na Rua Pio XI, no bairro da Lapa, em São Paulo. Armados até os dentes com metralhadores, carabinas e revólveres, estavam prontos para matar. Foram 20 minutos de tiroteio, de massacre.

A casa vinha sendo vigiada por 40 agentes do DOI havia três meses. Minuciosamente vigiada. Quando entraram foi mesmo para eliminar. Mataram Pedro Ventura de Araújo Pomar, de 63 anos, e ngelo Arroyo, de 48, dirigentes do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, dissidência do Partido Comunista Brasileiro. O terceiro, João Batista Franco Drummond, morreu atropelado ali perto depois de conseguir fugir do cerco da ditadura.

O massacre da Lapa, como ficou conhecido, foi noticiado discretamente no Brasil. Fato censurado, não virou manchete de jornal nem capa de revista semanal. Mas a notícia correu mundo. Chegou a Paris, mais precisamente ao bairro onde eu morava, o XXème. Um cartaz feito de papel jornal foi colado num muro bem em frente ao meu prédio. O cartaz trazia uma foto em branco e preto de Pomar, uma de Arroyo e outra de Drummond, todas perfuradas por balas de metralhadora. “Le massacre de Lapa” foi escrito em letras garrafais em vermelho, cor de sangue.

Ainda não havia para mim o bairro da Lapa. Em 1976 morava a 10 mil quilômetros de São Paulo e não tinha ideia de onde ficava a tal casinha cinza da Rua Pio XI. Pela fotografia em branco e preto que vi num recorte da revista Veja que meu irmão enviou pelo correio, percebi que era bem simples, construída nos anos 50, com alpendre e rosas no jardim.

Ontem, quase 45 anos depois, eu parei em frente ao número 767 da Rua Pio XI para fazer uma fotografia do lugar exato onde foi realizado aquele massacre. Uma foto apenas para ilustrar esta crônica. As pessoas que passavam apressadas olhavam um pouco desconfiadas. Por que fotografar esse pequeno prédio de tijolinho onde funciona hoje um conjunto de consultórios médicos?

Eu não precisei procurar em qual quadradinho do guia da cidade fica o bairro da Lapa, a rua do massacre. Sou um morador da Lapa e, antes da pandemia, passava todos os dias em frente ao número 767 da Rua Pio XI para ir para o trabalho. Todos os dias eu olhava para aquele pequeno prédio de tijolinho e me lembrava dos três: Pomar, Arroyo e Drummond, que há 45 anos morreram de susto, de bala ou vício.

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