Justiça

O machismo nosso de cada dia na suposta polêmica de Michelle Bolsonaro

Exploração da vida privada de Michelle Bolsonaro contribui apenas para a disseminação do machismo que já é estrutural em nossa sociedade

Foto: Abelardo Mendes Jr/ Ministério da Cidadania
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Recentemente foi veiculada a notícia de que Michelle Bolsonaro estaria traindo o marido com Osmar Terra. Uma das reportagens veiculada no site Brasil 247 refere: “Ela chegou, inclusive, a viajar sozinha pelo país com Osmar Terra, o que seria o principal motivo de sua queda”. Sozinha? Mas não viajamos todas (e todos) sempre sozinhos, mesmo quando outras pessoas conhecidas nos acompanham? Ela não estava acompanhada do ministro? E ele? Viaja sozinho também? Ou será que ainda estamos vivendo tempos em que mulher deve viajar acompanhada… do marido, do filho, dos pais, de alguma espécie de tutor, fiador de sua moralidade?

Pior de tudo é ver homens e mulheres que se dizem de esquerda comemorar, repassando à exaustão mensagens sobre a suposta traição que, vamos combinar, caso tenha ocorrido, simplesmente não nos interessa. As florestas da Amazônia estão sendo negociadas; um navio com minério da Vale (de novo a Vale!) está afundando na costa do Maranhão, prestes a iniciar mais um terrível desastre ambiental. O INSS não atende as pessoas que, dependentes de “benefícios” previdenciários, pernoitam em filas imensas. Escolas estão sendo militarizadas. O desemprego não cai. A informalidade escraviza. O dólar segue alto. Os casos de feminicídio só aumentam. Não há evolução nas investigações sobre a morte de Marielle. Até hoje ninguém sabe quem foi o responsável pela cocaína apreendida em avião presidencial. O presidente chama pessoas para um ato contra o parlamento, mas… estamos preocupados em discutir a vida amorosa de Michelle Bolsonaro.

Michelle é uma mulher. Não importa que seja casada com alguém que para quem é melhor que o filho “morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”, alguém para quem existem mulheres que “merecem” ser estupradas e podem ser chamadas de vagabunda. Não importa. A vida pessoal de Michelle apenas a ela pertence e se não compreendermos isso, não podemos falar em superação do modelo patriarcal e misógino que retroalimenta a sociedade do capital.

Depósito inexplicado no caso Queiroz, proeminência em um governo envolvido com milícias e anti direitos humanos… São várias as razões para se criticar Michelle Bolsonaro, mas supostas relações de sua vida pessoal não são uma delas. (Foto: Evaristo SA/AFP)

Compreender que simplesmente não é mais possível usar o machismo como arma política de reprodução de sujeição é uma lição urgente, inclusive para quem se diz crítico da sociedade atual. Não há mulher alguma, ao menos da geração que compartilho, cuja vida sexual não tenha sido já utlizada, em algum momento, como argumento de repreensão moral e política. Não há mulher da minha geração que já não tenha sido repreendida ou de algum modo “lembrada” de que os abusos que porventura sofreu no casamento, no ambiente de trabalho ou no espaço público são consequências do seu comportamento. São, portanto, culpa sua. Seguiremos reproduzindo essa mesma lógica?

O discurso que “incrimina” Michelle por um suposto caso extraconjugal é nojento. Perpetua a “caça às bruxas” que persegue as mulheres desde o século XV, como ensina Silvia Federici, pensadora italiana em “O Calibã e a Bruxa” (Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2018). Superar esse machismo estrutural depende de uma atitude diária e constante de refutar qualquer comportamento que o reproduza. Podemos e devemos fazer críticas ao atual governo, mas não conseguiremos instaurar uma discussão que nos conduza a mudanças, se insistirmos em cometer os mesmos erros daqueles que professam o conservadorismo machista.

Nossos corpos nos pertencem!

É preciso compreender que essa é já uma proposição revolucionária, pois o sistema social em que vivemos utiliza corpos como mercadorias. E domina também nossas mentes.

Na época das eleições, muitos revelaram espanto diante da constatação de que, dentre os eleitores do discurso violento que nunca escondeu seu desejo de eliminação da população pobre, negra e LGBTI, bem como da sujeição das mulheres, estivessem justamente pessoas negras, pobres, mulheres[1].

É preciso voltar a estudar Marx[2], Althusser[3], Gramsci[4]. Eles insistem em revelar que a ideologia é a principal arma do capital. E que ela se reproduz desde antes do nosso nascimento, em praticamente todas as instâncias sociais, criando um pensamento hegemônico que nos convida, mesmo que de modo inconsciente, à identificação com padrões que tantas vezes sequer nos representam. Com padrões de conduta social que nos assujeitam ou eliminam. Dizer que menina usa rosa e menino veste azul é parte disso. Usar a intimidade de uma mulher para tentar criar um fato político, também.

No Mês  da Mulher, em que nos convoca a reconhecer o longo caminho que ainda precisamos percorrer para viver em uma sociedade na qual todas as pessoas convivam com igualdade e respeito, é essencial perceber que não haverá avanços significativos, estruturais, enquanto não reconhecermos o “machismo nosso de cada dia”[5] e, sobretudo, sua íntima imbricação com a ideologia do capital.


Referências:

[1] Um estudo sobre os eleitores do atual presidente identifica, dentre eles. “Femininas e “bolsogatas”, mulheres “jovens, faixa etária dos 20 a 30 anos, sem filhos ou com filhos pequenos, com diploma em áreas diversas, atuam no mercado em diferentes profissões”, independentes financeiramente, bem como “mães de direita”, mulheres entre 30 a 50 anos, de classe média baixa, para as quais “gays, lésbicas, bi e transexuais deveriam “viver entre os seus””. Leia na íntegra. 

[2] [3] [4] Leia aqui.

[5] Expressão usada pela colega e amiga Gabriela Lenz de Lacerda, de que aqui me aproprio.

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