O jornalista questionado por fazer… jornalismo

Colegas melindrados pelas revelações de Glenn Greenwald não pareceram ter os mesmos escrúpulos com autoridades judiciais

Greenwald é suspeito de fazer jornalismo

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Os jornalistas do Roda Viva questionaram um colega pelo fato de ele insistir em fazer jornalismo. A entrevista de Glenn Greenwald ao programa nos lembrou a importância da profissão e da coragem da denúncia pública que muda a história. Isto pelo entrevistado. Do lado dos entrevistadores, pudemos ver como é difícil, e até cruel, encarar o próprio fracasso. Na verdade, Greenwald não devia existir – a sua simples presença lembra a responsabilidade do jornalismo, e seu discurso evoca a cada instante o dever de honrar o compromisso com a verdade.

Se bem percebi, havia nos entrevistadores um incômodo com a origem das mensagens reveladas. Compreendo. Todavia, parece que a Constituição “pensou” nisso e decidiu a favor do jornalismo: mesmo com origem ilícita, é permitido usar. É isso que Greenwald faz e isso, estranhamente, desagrada a seus colegas, que, afinal, não revelaram idêntico escrúpulo ao promover vazamentos vindos de autoridades. Acho que há um sério problema de duplo critério: há vazamentos bons e vazamentos maus. Os bons vêm dos agentes públicos. Os maus serão todos os que se revelarem contra os interesses dessas autoridades. O argumento implícito parece ser o da exceção: o vazamento é a única forma de combater crimes graves e exige ressalva a ser decidida pela autoridade de turno – este, no fim das contas, o verdadeiro soberano. Gostaria de argumentar em sentido contrário: a questão política mais importante (e grave) é a dos vazamentos feitos pelas autoridades.

Este crime de vazamento “oficial” está sendo perigosamente concebido como monopólio do Estado. Um crime institucional, das “autoridades de bem”. Este caminho é um velho conhecido: quando o Estado permite a seus agentes escolher quando a lei se aplica ou não, instala a corrupção dentro das suas instituições. Logo a metástase se espalhará e a linha que separa agentes estatais e delinquentes ficará mais nebulosa. Afinal, ambos violam a lei.

A tolerância a estes crimes tem sido promovida sob a alegação de que os vazamentos têm objetivos nobres e visam um respeitável interesse público. Nem uma coisa, nem a outra. Se pusermos de lado a hipocrisia do discurso dominante, perceberemos que não há nenhum “superior interesse público”, mas uma razão muito mais humana: a venalidade. O que se passa entre o jornalista e a autoridade é um negócio: dê-me informação que pago com elogios; eu ganho audiência, você uma biografia. Eis a breve história da construção do mito do juiz-herói.


Na melhor tradição democrática, a política sempre esteve ligada à publicidade. Mostrar significa tornar visível, exibir, sujeitar ao juízo público. O chamado vazamento institucional cria um poder profundamente antidemocrático. Um poder oculto que sobrevive à custa de um exigente código de silêncio (a omertà de que tanto falam). Este é, talvez, o traço mais perigoso deste fenômeno. Não se trata apenas de um crime que é cometido pelas pessoas a quem confiamos a defesa da nossa liberdade e o cumprimento da lei. O que torna estes crimes particularmente graves é que são consequência de uma aliança espúria entre uma parte da mídia e uma parte do sistema judicial, que criam, em conluio, um novo poder alimentado das trevas e do silêncio – um deep state, livre para as mais sórdidas conspirações.

Para seu consolo, alguns dizem que o fenômeno também existe em outros países. Isso alivia o sentimento de culpa, é verdade. Em Portugal, por exemplo, esta prática criminosa é um escândalo que se tornou rotina (na lei portuguesa, violação de segredo de Justiça). Mas com uma diferença. Nos outros países, os Estados negam, mentem e, no limite, encobrem. No Brasil, os agentes da lei confessam e o sistema os protege, quando não os aplaude. Isso muda a natureza do crime. Não é apenas abuso de poder, mas a obscena exibição pública de um poder ilegítimo que acabará por corroer a confiança em ambas as instituições, a imprensa e a Justiça. Nada disso passou pela cabeça dos jornalistas do Roda Viva. 

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