Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O inventário

Herdei dos meus pais um contêiner de fotografias. Nesta semana, voltei a abri-lo, não para organizá-las, mas para eliminar as que não fazem mais sentido

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Herdei dos meus pais um contêiner de fotografias. De todos os tipos e formatos, em preto e branco, aquelas dos anos 1970 que perderam a cor, muitas coloridas. Grandes, pequenas, minúsculas. Nunca as organizei, apesar de me prometer de tempos em tempos.

Elas adormecem há décadas dentro do baú, misturadas, mas todas viradas pra cima. De vez em quando, dou uma olhada. São tantas que, sentado no chão, vou espalhando uma a uma, tentando separar, nunca conseguindo. Desisto.

Desisto e volto com tudo para o mesmo lugar.

Esta semana, voltei a abrir o contêiner, não com o objetivo de organizá-las, já percebi que é impossível, mas para eliminar aquelas que não fazem mais sentido.

Como assim, não fazem mais sentido?

O meu pai vivia com uma câmera dependurada no pescoço, sempre que não estava preocupado com os rumos da meteorologia, tirava fotos e mais fotos e mais fotos, que acabaram enchendo um contêiner que caiu nas minhas mãos.

Durante uma fase, ele escrevia legendas no verso. Legendas mais precisas do que aquelas da Folha de S.Paulo nos anos 80, que informavam que o Corinthians ganhou do Palmeiras por um a zero no Pacaembu, zona oeste de São Paulo.

Um garboso leão descansa em sua jaula no Jardim Zoológico de Belo Horizonte depois de um lauto almoço. Ele merece.

Esta é apenas uma das legendas que estão guardadas. Tem outras.

O velho na rampa de um excelente restaurante onde almoçamos fartamente em Napoli, numa tarde de sol.

Posto Meteorológico em Cataguases, Zona da Mata mineira, reformado por mim em janeiro de 1966. Eu, Jesus, Airino e Mateus.

Mas o que eu queria mesmo era apenas eliminar aquelas sem sentido, fazer uma limpa, diminuir o volume. Acabei eliminando três pacotaços. Fotos de lugares não identificados, aquelas fora de foco, sem ninguém, por exemplo. Fotos de placas em estradas, como aquela que indicava Passa Quatro 5 km.

Misturadas às fotos do meu pai, estão também as minhas sobras, fotos que nunca cataloguei e fui guardando, não me pergunte o motivo.

Das minhas, eliminei:

18 corvos nos tão lindos gramados campos de Londres.

31 montanhas de Minas.

27 pombos pousados em cabeças de estátuas pelo mundo afora. Só no Jardin des Tulleries, são 9.

17 trepadeiras com flores de todas as cores.

21 cachorros, inclusive um sem pelo, muito doente, tomando sol numa rua de Havana..

74 fotos de meus filhos, totalmente fora de foco porque eles, bem pequenininhos, não paravam quietos

44 flores de todos os tipos e cores. Rosas, crisântemos, copos de leite, azaleias, amor-perfeito, begônia e por aí vai.

5 fotos de araras brigando num parque em Manaus, todas fora de foco.

2 fotos de um menino comendo macarronada, todo lambuzado, em Veneza.

11 de bolos de aniversário, com velas de todas as idades. De 1 ano a 77 anos.

5 de janelas do avião e, lá fora, aeronaves paradas, sem a menor poesia.

1 de um homem com um bigode enorme, nunca soube quem era.

3 de panelas cheias de carne, talvez para a preparação de um churrasco não sei onde, não sei quando.

Uma foto que fiz no Hotel Tropical de Manaus, uma jaula de Sagui de Tufo Preto onde o Sagui de Tufo Preto, essa eu guardei para ilustrar esta crônica.

As fotos, cinco do meu primeiro casamento e 12 do primeiro casamento da minha mulher, essas guardei. Sempre estiveram ali no contêiner, convivendo na maior harmonia.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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