

Opinião
O incômodo de Cláudio Castro
O desconforto do governador perante as determinações civilizatórias e constitucionais do STF não é jurídico, é político
A lógica de guerra que embalou a Operação Contenção, deflagrada em 28 de outubro de 2025 nos complexos da Penha e do Alemão, recolocou a segurança pública no centro da política brasileira. No epicentro, a ADPF 635, proposta em 2019 pelo PSB, questiona uma política que transformou o Rio de Janeiro em laboratório de uma letalidade policial estruturalmente incompatível com os direitos fundamentais.
Durante a pandemia, o ministro Edson Fachin concedeu liminar restringindo operações em favelas a “hipóteses absolutamente excepcionais”, com exigências de planejamento, transparência e controle. Nos anos seguintes, o Supremo ajustou parte dessas restrições, mas consolidou um regime permanente de condicionamento. Nenhuma operação pode ocorrer sem proporcionalidade, câmeras corporais, ambulâncias e perícia independente, nada além do mínimo civilizatório previsto na Constituição.
Em novo desdobramento, o ministro Alexandre de Moraes determinou a preservação das cenas do crime, o acionamento do Ministério Público e a elaboração de um plano de recuperação dos territórios dominados por facções e milícias. O gesto bastou para provocar críticas do governador Cláudio Castro, que acusou o STF de impor “amarras malditas” à polícia. A frase é reveladora: o que o Supremo chama de Estado de Direito, Castro chama de obstáculo.
O ponto central é, porém, outro. O STF não disputa o comando do Executivo, apenas cobra o cumprimento da Constituição. Em vez de operações midiáticas e pontuais, que transformam favelas em zonas de guerra e rendem dividendos eleitorais, a Corte exige planejamento, ocupação duradoura e reconstrução da autoridade estatal legítima. Nada mais, nada menos. Mas, no Brasil de hoje, pedir o óbvio virou uma forma de provocação.
O Supremo tem assumido, com frequência crescente, um papel de reorientação em temas de alta complexidade, como demonstrou ao garantir a vacinação durante a pandemia e ao impor medidas de proteção aos biomas amazônico e pantaneiro. A segurança pública agora entra nesse mesmo campo: o dos problemas estruturais que desafiam a capacidade do Estado e exigem cooperação federativa, planejamento e controle judicial das inações governamentais.
Ao projetar a crise fluminense para o plano nacional e indicar o protagonismo da Polícia Federal no enfrentamento às redes de armas, drogas e milícias, o STF reafirma que o combate ao crime não se faz com retórica bélica. O problema ultrapassa o Rio, exige coordenação e políticas públicas consistentes, não incursões televisionadas e slogans de “guerra ao terror urbano”. Mas é justamente essa reconfiguração que ameaça a encenação político-eleitoral que sustenta o governador. Ao federalizar o tema, o STF toca o nervo exposto de um projeto ideológico. A decisão confronta a lógica bolsonarista que ancora o discurso de Castro, fundada na autoridade armada, na hostilidade ao “ativismo judicial” e na defesa da força como linguagem de governo. O desconforto do governador, portanto, não é jurídico, é político.
Pesquisa Datafolha mostra que 68% dos fluminenses desconhecem a ADPF das Favelas. Entre aqueles que conhecem, 41% apoiam a ação e 43% a rejeitam. A Operação Contenção, por outro lado, é vista como “bem-sucedida” por 57% dos entrevistados, e mais de 70% defendem o uso das Forças Armadas como instrumento de pacificação. A divisão é evidente e profundamente ideológica: moradores de favelas e eleitores de Lula tendem a apoiar a ADPF, associando-a à defesa de direitos e à reconstrução da autoridade estatal legítima. Já os bolsonaristas e adeptos da retórica da “mão dura” a enxergam como obstáculo à imposição da ordem pela força.
É nesse abismo de valores, entre o direito e a violência, entre a Constituição e o espetáculo, que se inscreve o verdadeiro incômodo de Castro. O STF não está “invadindo competências”. Está apenas lembrando que o Estado não pode matar sem responder por isso. E talvez seja justamente essa lembrança, tão simples quanto constitucional, o que mais incomoda certos governantes. •
Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O incômodo de Cláudio Castro’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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