Diversidade

O impacto da crise política e econômica na vida das mulheres brasileiras

Debate sobre impacto econômico da pandemia deve ser atravessado por uma perspectiva de gênero e raça.

Mulher reza em frente à igreja de São Jorge, no Rio de Janeiro. Foto: Mauro Pimentel/AFP
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Ao longo da história humana, durante períodos de intensa crise social, política e econômica, as classes mais vulneráveis tendem a ser mais afetadas pelas transformações negativas que decorrem das adversidades. No Brasil, país cujas bases coloniais e escravocratas ainda sustentam um modelo socioeconômico de intensa disparidade social, aqueles que constituem as classes menos favorecidas têm sofrido com os sintomas deste sistema desde a sua fundação.

Contudo, nos últimos anos, dados os cenários de crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19 e de crise sociopolítica, ilustrada pela ascensão da extrema-direita e consolidação de perspectivas anti-minorias políticas, o Brasil passou a exibir uma face ainda mais visceral quanto às suas classes mais vulneráveis.

Segundo dados de uma pesquisa publicada na revista científica The Lancet, mulheres foram as mais afetadas pela crise sanitária nos quesitos “emprego, trabalho não-remunerado, educação e violência em razão de condição feminina”. A pesquisa liderada pela brasileira Luísa Flor, pós-doutoranda na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, analisou o contexto da classe feminina em 193 países entre os períodos de março de 2020 a setembro de 2021.

No que concerne ao cenário empregatício, mulheres em todo o globo estavam mais propensas a abdicar de seus empregos para exercerem funções de cuidado não-remuneradas, assim como na América do Sul e no Caribe, a percepção de aumento nos índices de violência doméstica contra mulheres foi maior.

Ainda de acordo com os dados, apesar do desemprego ter sido um fator presente nas respostas de 58% dos entrevistados, em março de 2020, a cada 1 homem que afirmava ter abdicado do emprego para exercer funções de cuidado não-remuneradas, o número para as mulheres era de 1,8.

Em setembro de 2021, a disparidade havia aumentado para 2,4%. Além disso, a pesquisa constatou que as expectativas sociais e os papéis de gênero foram essenciais para manter mulheres afastadas dos trabalhos remunerados. Pois, em boa parte dos contextos culturais investigados, o cuidado com os filhos e demais serviços de ordem doméstica são destinados exclusiva ou maioritariamente às mulheres. A pesquisa constatou que essa disparidade entre os sexos ocorreu em todos os países analisados, em maior ou menor intensidade.

No Brasil, mulheres negras são historicamente atreladas ao cuidado não-remunerado, história que se iniciou através do tráfico transatlântico de pessoas africanas e afrodescendentes e se perpetua através dos “quartinhos de empregada” e do “quase parte da família” no imaginário colonial brasileiro. Desta forma, mulheres negras estão mais suscetíveis aos trabalhos mal remunerados e análogos à escravização até os tempos atuais, permanecendo como mais afetadas durante os períodos de instabilidade que são suscitados pela crise sanitária atrelada à crise política.

Além do impasse que se interpõe na encruzilhada da interseccionalidade, mulheres negras ainda se configuram como os indivíduos que realizam a jornada de trabalho tripla com grande frequência. Pois, tendem a trabalhar formal ou informalmente, responsabilizar-se por suas próprias famílias e, em paralelo, cuidar de outros indivíduos, configurando um cenário de sobrecarga e remunerações insatisfatórias.

Foto: EBC

Quando se pensa em indivíduos que sustentam as suas famílias e provêm os recursos necessários para a manutenção de uma residência, é usual que o imaginário coletivo penda para a figura masculina. Contudo, no Brasil, a face real de quem mantêm, por vezes de forma solitária, as suas famílias, é feminina e racializada.

Como apontam os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre os anos de 2014 a 2019, quase 10 milhões de mulheres se tornaram gestoras de suas casas, enquanto 2,8 milhões de homens perderam a posição no período citado. Em um contexto no qual, politicamente, as brasileiras estão abandonadas à própria sorte, o cenário social se exibe pouco promissor. Pois, os índices de desemprego e trabalho informal aumentaram de forma significativa entre as mulheres.

Além das dificuldades acarretadas pelo desemprego, outros pilares fundamentais foram atingidos nas vidas de mulheres e meninas no Brasil e em outras partes do mundo. Segundo dados da pesquisa realizada pela ONG Plan International, intitulada “Vidas Interrompidas 2: em suas próprias vozes – O impacto da covid-19 na vida de meninas e jovens mulheres”, 95% das meninas foram negativamente afetadas pela crise sanitária, tendo sido a educação o pilar mais enfraquecido, em razão das dificuldades de acesso à tecnologia, pobreza, ausência de espaços apropriados para os estudos, aquisição de dados móveis e necessidade de complementação da renda familiar.

Durante as entrevistas, muitas jovens relataram dificuldades de participação nas aulas online, como também os desafios na conciliação dos estudos com os trabalhos domésticos. Corroborando com o cenário exposto pela organização Todos pela Educação, no qual os índices de evasão escolar aumentaram exponencialmente em 2021, chegando a mais de 200 mil crianças fora das escolas.

Ademais, dentre os aspectos da crise que também se fortalecem no contexto brasileiro, está a continuidade das ações necropolíticas em comunidades periféricas e em espaços socialmente desprivilegiados. Afinal, em um cenário no qual o discurso fomentado pela extrema-direita contribui para uma percepção profundamente negativa das classes menos favorecidas, o extermínio e o descaso político com a parcela racializada da população se tornam maiores.

Nessas circunstâncias, a repulsa social sustentada por anos de construção de um imaginário pernicioso, acentua-se através das políticas do ódio que consolidam a imagem das mulheres, das pessoas negras e de outras minorias políticas no Brasil como “o outro” a ser combatido e controlado.

No país em que mulheres negras ainda são resgatadas de regimes análogos à escravidão e que em meio à intensificação da violência policial meninas negras ainda são alvo de balas “perdidas” nas comunidades periféricas, precisamos estar politicamente atentos e ativos. Nossas vozes devem acordar dos seus sonos injustos aqueles que nos desejam submissos.

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