Rafic Ayoub

Jornalista e escritor

Opinião

O Holocausto palestino

A banalização da vida nos territórios palestinos controlados por Israel beira o surrealismo

Soldados israelenses no front do conflito com o Hamas, na fronteira de Gaza. Foto: Thomas COEX / AFP
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A Síndrome de Estocolmo define um estado psicológico vivenciado pelas vítimas em relação a seus agressores. Após um tempo prolongado de submissão, intimidação, tortura e todos os demais tipos de violência, acabam nutrindo um sentimento de admiração, simpatia e de adoração pelos seus algozes, incorporando, por fim, seus nefastos atributos.

Apesar de todo o sofrimento, violência, política de extermínio e limpeza étnica que culminou tristemente com o Holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial, Israel parece ter desenvolvido essa tão deplorável síndrome.

Apoiado no poderio bélico assegurado historicamente pelo governo norte-americano, Israel continua perseguindo seu insano ideal de reconstrução do Grande Israel bíblico, que se estendia do Tigre ao Eufrates, mesmo que para isso tenha de exterminar seus vizinhos milenarmente ali instalados.

Neste jogo sujo, a banalização da vida na Palestina, em especial na chamada Faixa de Gaza, beira o surrealismo e estratifica a morte, com a atribuição de maior ou menor valorização de acordo com os “certificados de origem”, emitidos sob critérios vergonhosos de nacionalidade, raça, religião e, quem sabe, cor dos olhos, cabelos, sexo etc.

Graças ao didatismo do poderio militar israelense de plantão, aprendemos hoje que a vida de judeus vale infinitas vezes mais que a dos infelizes árabes palestinos, mortais comuns, primos pobres e, ironicamente, também semitas.

O outrora pequeno David parece ter ressurgido agora mais forte, poderoso e intolerante na pele de Golias

Por isso mesmo, perturba, choca e fere profundamente qualquer senso de dignidade essa insensibilidade amoral e coletiva que alimentamos confortavelmente em nossas casas cada vez que um “terrorista” se implode em praça pública, sujando de sangue a consciência asséptica das capitais do autoproclamado mundo civilizado.

Achamos absurdo o efeito dos atos suicidas daqueles infelizes palestinos, os quais, apátridas e privados dos direitos mais elementares, radicalizam seu desespero num último esforço de serem ouvidos, oferecendo suas vidas em Holocausto. Mas não a causa. Isso parece não ter nenhuma importância, pois são apenas “terroristas” árabes, palestinos ou islamitas.

Ao contrário dos atos de bravura fake explorados como reais por Hollywood, para esses “terroristas” a morte é o último argumento contra a insensibilidade mundial em relação aos seus históricos sofrimentos e cada vez mais inaudíveis apelos contra a invasão e ocupação de suas terras. Para um povo espoliado em seus direitos mais elementares e em sua própria dignidade, exilado e refém em sua própria pátria, numa insólita condição que a chamada civilização ocidental teima em “varrer para baixo do tapete”, não existem alternativas a não ser morrer lutando.

Os palestinos nem sequer têm o direito mais elementar de cidadania e de representação no atual sistema político judaico, que, além de repelir qualquer tentativa de criação de dois Estados binacionais na região, não confere aos palestinos o direito de organização política com participação ativa no seu Parlamento, o Knesset, mesmo tendo hoje uma grande e significativa parcela populacional em Israel.

Diante dessa vergonhosa realidade, resta à ao hipocritamente “civilizado” Ocidente esconder a vergonha por sua cumplicidade e conivência com mais um abominável exemplo da degradação humana que Israel promove neste novo capítulo da sua política de extermínio do povo palestino. O que é fundamental para que a mídia e a opinião pública em geral saibam – e tenham a coragem de esclarecer em meio a esta desigual guerra de informações – é que o pioneirismo das ações e práticas de “terrorismo” em todo o Oriente Médio não é árabe, mas sim judeu.

Em 1948, em ação estrategicamente sincronizada, organizações terroristas judaicas como Irgun, Haganah e Stern e outras menos expressivas explodiram o QG das forças britânicas instalado no Hotel Rei David, na Palestina, já escrevendo com sangue inocente o início da história do atual Estado de Israel.

Para essas organizações judaicas (e os historiadores convenientemente de plantão), esse ato não foi terrorismo, mas sim um ato legítimo de defesa contra a ocupação, pelo então poderoso império britânico, das terras que, historicamente, julgavam suas.

Na realidade, este é apenas um dos diversos eventos que marcaram a ação terrorista dessas organizações judaicas na região, com a mesma violência que hoje tanto condenam na reação do povo palestino contra a invasão e usurpação de suas terras.

A história é escrita pelos vencedores. Caso contrário, todos os movimentos de resistência europeus que enfrentaram a invasão e ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial, como os Maquis, na França, e os Partisans e/ou Partisanis, na Iugoslávia e Itália – sem falar dos movimentos clandestinos judeus que operaram diretamente dos guetos na Polônia, por exemplo – teriam de ser considerados os precursores do terrorismo da era contemporânea.

Os historiadores modernos, porém, que hoje tratam como vilões os legítimos movimentos nacionalistas de resistência árabes, reservam a esses movimentos judaicos tributos de heróis e honras de Estado, apesar de seus respectivos passados “terroristas”, evidenciando um absurdo critério de dois pesos e duas medidas.

Por que o Hamas, na Faixa de Gaza, o Fatah, na Cisjordânia, e o Hezbollah, no Líbano, não recebem o mesmo tratamento se, efetivamente, são movimentos nacionais de resistência contra a invasão e ocupação de suas respectivas pátrias?

Cinicamente, esquecendo seu passado também manchado de sangue e vergonha, o governo israelense exige que a opinião pública mundial julgue o Hamas e o Fatah, primeiro, como “terroristas” e, em segundo, em condição de igualdade. Ou seja, como um inimigo poderoso que o invade e ocupa – o que, convenhamos, seria cômico se não fosse trágico.

Esse discurso desonesto expressa o mesmo absurdo de, por exemplo, um estuprador exigir que sua vítima silencie e não reaja à tamanha e inaceitável violência a ela imposta.

Os massacres cometidos contra o povo palestino em Deir Yassin e nos acampamentos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982, e o da aldeia de Qana, quando foram mortos 56 civis, 36 dos quais crianças, nunca julgados ou punidos, têm poucos paralelos na história recente da humanidade. Como se fossem fatos de um mundo e de uma História diferentes.

Por menos que os crimes ocorridos nos citados campos de refugiados palestinos, os líderes sérvios Slobodan Milosevic e Radovan Karadzic foram condenados no Tribunal Internacional de Haia por extermínio e limpeza étnica. De todo modo, porém, nada justifica atentar contra a existência e integridade de outrem, seja em condições de guerra ou em tempos de paz.

É preciso reconhecer que poucos povos têm autoridade suficiente para falar de dor e sofrimento como o povo judeu. Da mesma forma, ninguém mais do que Israel viveu e sobreviveu à angústia da luta do mais fraco contra o mais forte, já desde os tempos bíblicos, quando o pequeno Davi enfrentou o gigante Golias. Porém, se é verdade que a História se repete, o outrora pequeno David parece ter ressurgido agora mais forte, poderoso e intolerante na pele de Golias.

Que o mundo ocidental possa também ver com os mesmos olhos benevolentes com os quais têm visto Israel a determinação patriótica e heroica desses pequenos e bravos Davis palestinos que, abandonados à própria sorte, acreditam pobre e inocentemente em pedras vencendo canhões.

Enquanto isso, a exemplo da célebre Cartago na antiguidade, os novos Cíceros incrustados a peso de ouro no Capitólio americano, como golems programados do poder de plantão, continuam a decretar o destino daqueles que contrariam seus interesses, apoiados na certeza conivente da hoje ridiculamente decorativa ONU e do fraco e desacreditado Tribunal Internacional de Haia.

A consciência de todo esse poder é o que, provavelmente, explica toda a arrogância e impertinência do Estado judeu, que, apesar de condenado em inúmeras resoluções da ONU pelas contínuas violações dos acordos com seus vizinhos árabes, jamais se submeteu ao cumprimento de qualquer uma delas, afinal, quem poderia obrigá-lo a isso? Diante desse fato, resta uma inquietante pergunta que não quer, não deve e nem pode calar: quem pode deter Israel e seu reluzente e inesgotável Bezerro de Ouro?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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