Henry Bugalho

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Henry Bugalho é curitibano, formado em Filosofia pela UFPR e especialista em Literatura e História. Com um estilo de vida nômade, já morou em Nova York, Buenos Aires, Perúgia, Madri, Lisboa, Manchester e Alicante. Por dois anos, viajou com sua família e cachorrinha pela Europa, morando cada mês numa cidade diferente. Autor de romances, contos, novelas, guias de viagem e um livro de fotografia. Foi editor da Revista SAMIZDAT, que, ao longo de seus 10 anos, revelou grandes talentos literários brasileiros. Desde 2015 apresenta um canal no Youtube, no qual fala de Filosofia, Literatura, Política e assuntos contemporâneos.

Opinião

O golpe de 1964 e a reescrita da história do Brasil

No fundo, a pretensa ‘verdade sufocada’ não passa de uma coleção de mentiras convenientes

Protesto durante a ditadura no Brasil, iniciada em 1964. Foto: Reprodução
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Proponho a você um exercício de imaginação. Suponhamos nós que a chanceler da Alemanha declarasse publicamente que deseja “celebrar” a ascensão do nazismo. Mais, que na verdade os horrores do Holocausto, da sádica execução em escala industrial de milhões de pessoas, foi um mal menor, serviu apenas para evitar que os temíveis comunistas tomassem conta da nação alemã nos anos 30.

Imaginemos isto.

Agora imaginemos também a reação a uma declaração destas, tanto da população alemã quanto da comunidade internacional. Sem dúvida possível, isto seria recebido com extrema indignação e horror. Afinal, de um regime autoritário, arbitrário e brutal, nada há a ser celebrado.

Não existe “e se?” na História. O que ocorreu foi o que ocorreu factualmente e não temos sequer como inferir com alguma propriedade o que poderia ter ocorrido se os eventos tivessem se desenrolado de modo diverso. Podemos especular, mas o passado está ali, intocado e fixo. Embora possamos construir novas interpretações embasadas em novas evidências, jamais fará qualquer sentido fazer revisionismo intuitivo, ou ainda pior, volitivo.

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Pois foi este cenário hipotético e absurdo acima que vimos materializar-se dias atrás no Brasil. Um presidente já eleito com base num discurso extremamente divisivo, que repetidas vezes apregoava sua admiração pela ditadura militar, por nomeados torturadores, pela tortura em si, pela repressão – vale aqui lembrar que, em entrevista para o programa “Roda Viva”, ao ser perguntado sobre qual era o seu livro de cabeceira, Bolsonaro respondeu de pronto “A Verdade Sufocada” do notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem, aliás, ele havia prestado homenagem durante seu voto pelo impeachment da ex-presidente Dilma, malgrado aquele ter sido considerado culpado pela Comissão da Verdade – e que estas falas, que horrorizava uma parcela do eleitorado brasileiro, foram vistas majoritariamente como expressões genuínas de um sujeito que “não tinha papas na língua”, que “ousava falar a verdade” e que “enfrentava a ditadura do politicamente correto”.

A grande questão aqui é que condenar ditaduras de maneira veemente e irrestrita não se constitui em absoluto em mimimi politicamente correto. Trata-se, oras, tão somente de repudiar que um estado promova barbaridades contra seus próprios cidadãos.

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A primeira mentira que sustenta este falseamento histórico é a de que a ditadura só perseguia terroristas (entenda-se, integrantes da luta armada) e vagabundos. A Comissão da Verdade levantou fatos que evidenciam que isto não se sustenta. Milhares de pessoas, muitas dentre elas sem qualquer vínculo com partidos ou com movimentos políticos contrários ao governo militar, foram vítimas da repressão e da arbitrariedade da ditadura. E, ressalte-se, ainda que este fosse o caso, mesmo assim seria absolutamente inaceitável, posto que violaria direitos humanos essenciais, como inclusive o direito de não ser torturado, morto ou privado de direitos políticos. Todos temos o direito de não sermos torturados por quem quer que seja que nos governe, e isto deveria ser algo tão óbvio que chega ao ridículo o simples enunciar.

A segunda grande mentira é a chamada “contrarrevolução”, dando a entender que o golpe de 1964 e a ditadura que lhe seguiu teriam se constituído em reação a uma movimentação revolucionária comunista no Brasil. Os registros históricos demonstram de forma cabal que a luta armada foi consequência, e não causa do golpe de 64. Qualquer argumento fundado na ideia de que a ditadura militar foi instaurada para evitar uma ditadura comunista é, em si mesmo, um absurdo, vez que ela se voltou contra o presidente Jango e contra o favorito do pleito que se aproximava, Juscelino, ambos ricos, ambos representantes da burguesia brasileira. E o argumento do mal menor, como vimos no caso do nazismo, não se sustenta, pois não temos como assegurar se a) haveria realmente alguma tentativa de revolução comunista no Brasil, b) se esta hipotética revolução seria bem-sucedida e, enfim, c) se esta hipotética ditadura comunista à brasileira seria mais repressiva ou brutal que a ditadura militar. Como dito anteriormente, não existe “e se?” na História. Sabemos o que aconteceu, e não o que poderia ter acontecido, tarefa esta que, segundo Aristóteles, seria da ficção (ou da poética, se quisermos ser mais precisos). Acresce que o golpe foi dado e não houve luta, simplesmente porque não havia os alegados grupos comunistas, que por óbvio teriam de reagir.

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A terceira mentira tem a ver com as vivências de testemunhas daquela época. Umas com depoimentos fidedignos das atrocidades de que foram vítimas ou testemunhas nos porões da repressão, outras que garantem a inexistência dessas atrocidades porque nunca as viram.

É evidente que num país com “90 milhões em ação”, como apontava a famosa canção da Copa de 70, a vasta maioria dos brasileiros não teria problemas diretos com a ditadura, do mesmo modo que grande parte dos mais de 60 milhões de alemães não foi vítima dos nazistas, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial ser deflagrada e que terminaria por devastar a Alemanha e depositar sobre gerações de alemães o peso de uma gigantesca culpa histórica.

A repressão de regimes autoritários por forçoso volta-se contra os dissidentes, contra a oposição, a imprensa, os “elementos subversivos”, e isto vale não apenas para a Alemanha nazista, mas para a maior parte das demais autocracias. Aliás, este é o segredo da longevidade de muitos regimes ditatoriais: proporcionar estabilidade social e política às custas do silenciamento ou eliminação das vozes dissidentes. Quem sofre em ditaduras são aqueles que se opõem à arbitrariedade e aos abusos de poder, portanto, se você, seus pais ou seus avós nunca tiveram problema com o regime militar, o mais provável é que nunca representaram uma pedra no sapato daqueles que usurparam o poder ou seus asseclas. E é justamente aí que residem a beleza e a força das democracias, o direito de qualquer cidadão poder discordar de seus governantes sem precisar temer a tortura, a morte ou o exílio.

Mas estas não sãs as únicas mentiras que pairam sobre este período. Há também as teses de que o país era nesta época mais seguro, que não havia corrupção, que foi uma “ditabranda”, etc.

E outro grande equívoco é de julgar um regime repressivo por seu número de vítimas, como se houvesse uma competição de quem matou mais, se foi Hitler, Stalin ou Mao, se foi Pinochet ou Fidel Castro. Este tipo de contabilidade bizarra é duplamente cruel, em parte por considerar as vítimas dos abusos, das violências e das execuções como meros números, como se cada uma daquelas vítimas não tivesse uma história e só valesse como um insignificante item num panorama de horror, mas também porque, para quem vive e sofre nas garras de uma ditadura repressiva, pouco importa se em outro país, no Camboja ou na União Soviética, por exemplo, era ainda pior. O sofrimento de alguém torturado ou morto por agentes do Estado não pode ser relativizado deste modo, a não ser por aqueles que pensam com as premissas de torturadores e executores.

E você pode igualmente condenar os abusos de regimes que mataram milhões, milhares ou centenas, não importando o viés ideológico, com base no simples reconhecimento de que violações de certos direitos humanos são uma atrocidade, ainda mais quando cometidas por aquelas instituições e autoridades que deveriam zelar por seus cidadãos.

Por fim, é lamentável que tão pouco tempo depois do golpe de Estado que precipitou o Brasil num regime repressivo que duraria mais de duas décadas, ainda tenhamos de confrontar este tipo de negacionismo histórico amadorístico, que não encontra qualquer respaldo nos trabalhos dos historiadores minimamente conceituados, e, pior, que ainda seja capaz de fazer a cabeça de tanta gente que repete irrefletidamente tais mentiras como se verdades fossem. No fundo, a pretensa “verdade sufocada” não passa de uma coleção de mentiras convenientes. Tenta-se sim reescrever o passado, mas com o olho no futuro, como bem previu George Orwell em seu genial 1984.

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