Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

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O futuro chegou depressa

A agenda de Lula estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência

O futuro chegou depressa
O futuro chegou depressa
Foto: Luis ROBAYO/AFP
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Dificilmente se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato como o do presidente Lula. A democracia esteve por um fio e foi salva (por agora), devido a uma combinação contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo secundado pelo apoio ativo do STF. As instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública estiveram ausentes, algumas foram coniventes com a arruaça depredadora de bens públicos. Quando uma democracia prevalece nestas condições, dá simultaneamente afirmação de força e de fraqueza. Mostra ter mais ânimo para sobreviver do que para florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criar conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro chegou depressa e com pressa.

O Brasil não voltará a ser o que era antes de Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos. O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. A ferida do colonialismo estava mal curada porque nem a questão da terra nem a existência do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) foram solucionadas. A última só com o primeiro governo de Lula começou a ser enfrentada (ações afirmativas etc.). A ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto que resultou na não punição dos crimes cometidos pelos militares. Estas duas feridas explodiram com toda a purulência na figura de Bolsonaro. O pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal, racial e sexista, que persiste na base da economia, ressentida em relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste. Esta ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda a política nos próximos anos. A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas, devido ao pacto de sangue entre a extrema-direita brasileira e a norte-americana.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda do petista estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência. Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico. Este capital está apostando na destruição da Amazônia e na solução final dos povos indígenas. As fotos dos Yanomâmis que circularam no mundo só têm paralelo nas fotos das vítimas do Holocausto dos anos de 1940. Como poderia eu imaginar que, oito anos depois de dar as boas-vindas na Universidade de Coimbra aos líderes indígenas de Roraima (comitiva em que se integrava a agora ministra Sônia Guajajara) e de receber deles o cocar e o bastão da chuva, grande honra para mim, assistiria à conversão do seu território, por cuja demarcação lutamos, num campo de concentração, um Auschwitz tropical? O Brasil precisa da cooperação internacional para obter a condenação por genocídio do ex-presidente e alguns dos seus ministros, nomeadamente Sergio Moro e Damares Alves.

Quando o futuro chega depressa, ele faz exigências que frequentemente se atropelam. O drama midiático causado pela tentativa de golpe exige muita atenção e vigilância por parte dos dirigentes. Contudo, visto das populações marginalizadas a viver nas imensas periferias, o drama golpista é muito menor do que o de não poder dar comida aos filhos, ser assassinado pela polícia ou pelas milícias, ser estuprada pelo patrão ou assassinada pelo companheiro. Estes são alguns dos dramas das populações que no futuro próximo responderão às sondagens sobre a taxa de aprovação do presidente Lula e seu governo. Quanto mais baixa for essa taxa, mais champanhe será consumido pelos golpistas e pelas lideranças fascistas nacionais e estrangeiras. Confiemos no gênio político de Lula, que sempre viveu intensamente estes dramas da população vulnerabilizada, para governar com uma mão pesada para conter e punir os golpistas presentes e futuros e para, com uma mão solidária, amparar e devolver a esperança ao seu povo de sempre. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O futuro chegou depressa”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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