Luana Tolentino

[email protected]

Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

O fim do Bolsa Família e a destruição do Brasil que um dia sonhou em ser grande

Não há qualquer garantia de que o programa ‘Auxílio Brasil’ terá a mesma eficácia do seu antecessor e se terá continuidade depois de 2022

Cartão do benefício Bolsa Família. Foto: Divulgação
Apoie Siga-nos no

De maneira tímida, quase que com uma nota de pé de página, a grande imprensa anunciou o fim do Bolsa Família, programa que tirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU e encantou o mundo, merecendo declarações como a do sociólogo polonês Zygmunt Bauman: “Ninguém, além do Brasil, conseguiu tirar 22 milhões de pessoas da pobreza”.

O programa, criado no primeiro mandato do ex-presidente Lula, também foi uma das iniciativas mais feministas que esse país já adotou. Ao privilegiar as mulheres como principais beneficiárias, teve papel importante ao dar a elas autonomia e contribuir para o fim de ciclos de violência, conforme lembrou Marilena Chauí em entrevista à revista Cult, em 2016:

Como o dinheiro vai para as mulheres, elas foram transformadas em chefes de família. (…) Com o Bolsa Família, quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. (…) As mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas fizeram diminuir o número de doenças femininas.

Finalmente, elas têm participado mais de atividades públicas, filiaram-se a movimentos sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa Família.

Mesmo com tantos impactos positivos, com a eficácia do Bolsa Família na redução da pobreza ao longo de duas décadas, o programa de transferência de renda provocou o ódio, a ira de muita gente. O Bolsa Família escancarou que vivemos em uma sociedade saudosa do passado escravocrata, que odeia pobres, o que pode ser comprovado por diversos estudos, como também nas mensagens trocadas nos grupos de WhatsApp da família, nas discussões nos almoços de domingo e nos editoriais de jornalões contrários ao programa.

Lembro de uma discussão que tive há alguns anos com uma “colega”. Enquanto ela insistia em chamar a política pública de “Bolsa Vagabundo” e “Bolsa Esmola”, eu lançava mão de entrevistas, pesquisas e da minha experiência como professora em regiões marcadas pela pobreza e pela miséria para defender o Bolsa Família.

Em determinado momento da conversa, ela disse: “Na fazenda onde o meu amigo mora, ninguém trabalha mais. Todo mundo recebe o Bolsa Família. Tem uma mulher que recebe R$ 5 mil por mês”.

Respirei fundo. Respondi que não era assim. É falsa a ideia de que os beneficiários do programa são preguiçosos. Acontece que, com a chegada do Bolsa Família, em várias localidades do interior do país, muitas famílias puderam deixar de se submeter a trabalhos indignos, à margem da lei, em troca de pagamentos irrisórios ou de um prato de comida. Nas palavras da pesquisadora Walquíria Domingues Leão Rêgo, autora do livro Vozes do Bolsa Família, com o benefício, “o tradicional coronelismo perdeu força e a arraigada cultura da resignação [foi] abalada”.

Meu argumento não foi suficiente. Com os ânimos acirrados, a minha antagonista prosseguiu:

– Recebe o Bolsa Família quem não precisa. Tem mulher que arruma filho só pra receber o Bolsa Família. Quanto mais filhos, mais elas recebem.

Contei até três. Respirei fundo novamente. Desta vez, fiz valer a máxima de que “contra fatos, não há argumentos”.
Expliquei que um levantamento feito em 2013 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome apontou que, em uma década, 1,69 milhão de famílias saíram de forma espontânea do programa após declarar que tinham renda familiar acima do limite permitido, de R$ 140,00 por pessoa. Argumentei que uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em 2015, detectou que das 13.216.986 famílias cadastradas no programa, apenas 1,23% recebia dinheiro de forma indevida. Disse ainda que dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) indicaram que as mulheres beneficiárias do Bolsa Família tiveram menos filhos do que a média nacional entre 2003 e 2013.

Não satisfeita, minha “colega” ainda tentou contestar o incontestável, apelando para o discurso da meritocracia.
– Então todo mundo que recebe de forma ilegal está na minha rua! Só pode! Não sei quem está errado, se é o partido, se é o governo, mas eu acho que as pessoas têm que trabalhar e conseguir as coisas com o próprio esforço.

Tal premissa só faria sentido se uma parcela significativa da população não precisasse do Bolsa Família para garantir a sobrevivência e ter acesso a condições de vida dignas, mas essa não é a realidade do Brasil. Em um país que “se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela”, conforme salientou o professor Gaudêncio Frigotto, políticas públicas que garantam a igualdade de oportunidades e a equidade social serão necessárias até que os problemas originados pela pobreza estejam superados. Não há o que se discutir.

Esse foi o último round do nosso embate. Dei graças aos céus por ela ter ido embora da festa em que estávamos, e aquela discussão ter chegado ao fim. Ufa! Fiquei exaurida. Quanta energia ruim…

Passados cinco anos do nosso encontro, fico pensando na reação que ela teve ao saber que neste mês os valores do Bolsa Família serão pagos aos beneficiários pela última vez. Isso ocorre no momento em que saltam aos nossos olhos imagens de famílias inteiras revirando caminhões de lixo, disputando ossos para matar a fome.

Embora amplamente divulgado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, não há qualquer garantia de que o programa “Auxílio Brasil” terá a mesma eficácia do seu antecessor e se terá continuidade depois de 2022, em uma ação tipicamente eleitoreira.

Com o fim do Bolsa Família, temos mais uma mostra de que o Brasil que um dia sonhou em ser grande vai sendo destruído, golpeado diuturnamente. Com o fim do Bolsa Família, o Brasil que um dia sonhou em ser grande fica cada vez mais distante.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo