Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

cadastre-se e leia

O fim da Europa Ocidental?

Os pilares que sustentam a social-democracia estão sob ataque desde a ascensão do neoliberalismo

(Foto: Ben Stansall/AFP)
Apoie Siga-nos no

O que até há pouco chamávamos Europa Ocidental era o conjunto de países que, no fim da Segunda Guerra Mundial, ficou sob a influência dos EUA, para cá da “Cortina de Ferro”, como então se designava a linha que separava os países capitalistas dos socialistas, estes sob a influência da União Soviética. A Alemanha ficou dividida em duas, a Oriental e a Ocidental, separadas pelo Muro de Berlim. As duas Alemanhas eram os países mais industrializados dos dois blocos. Terminada a guerra, instalou-se a competição entre os dois sistemas políticos e econômicos vigentes na Europa. A primeira tarefa era a reconstrução, pois a Europa estava arrasada. No lado ocidental, sob a tutela dos EUA, o Plano Marshall foi um vasto projeto de recuperação da Europa, com avultados recursos financeiros, metade dos quais reservados à Inglaterra.

Além de promover o relançamento da economia capitalista europeia, o programa visava travar a possível expansão para Oeste do comunismo, uma hipótese que na altura era verosímil, dado o crescimento dos partidos comunistas em todos os países europeus ocidentais. O Plano Marshall foi, assim, um instrumento da Guerra Fria. Essa competição explica que em 1953 se tenha perdoado 70% da dívida externa da Alemanha, dívida por reparações resultantes de ter perdido duas guerras no espaço de 40 anos.

Com esse impulso, a Europa Ocidental conseguiu retomar rapidamente o seu desenvolvimento. E também o seu ­bem-esta­r­ assente na promoção ampliada das classes médias, rendimentos estáveis, sistemas de saúde, de educação e de previdência social públicos e gratuitos, nacionalização dos setores econômicos considerados de valor estratégico para o bem comum, como, por exemplo, a água, a saúde, a educação e a energia. Esse complexo sistema político-social, que tinha sido ensaiado antes das guerras, assumiu o seu vigor e ficou conhecido por social-democracia, regime herdeiro daquele que no início do século se designara como socialismo democrático ou, doutra perspetiva, capitalismo organizado.

A partir da primeira crise do petróleo (1973), esse modelo político-social começou a dar sinais de crise. E estes eram bem evidentes quando colapsou a União Soviética e não cessaram de se agravar até hoje. Daí a importância de analisarmos brevemente as principais razões da sustentabilidade do modelo europeu que tanta curiosidade e desejo de emulação atraiu.

São três as causas principais do modelo social-democrata europeu: tributação progressiva, combinada com a nacionalização de ativos estratégicos, ausência de gastos militares e exploração dos recursos naturais fora da Europa. A tributação progressiva significava que quem tinha mais rendimento ou riqueza pagaria mais impostos. As taxas de tributação podiam atingir 70%. Esta era a maneira de financiar as abundantes políticas sociais que estavam na base do bem-estar dos cidadãos. Com a emergência do neoliberalismo e com o Consenso de Washington, que o consagrou, gerou-se a ideia de que os impostos eram um obstáculo ao desenvolvimento econômico e o mesmo acontecia com os  ativos estratégicos nacionalizados. As agências multilaterais (FMI e Banco Mundial) passaram a impor a baixa de impostos e a privatização dos recursos estratégicos. Privados dos recursos dos impostos e confrontados com os possíveis custos políticos decorrentes de reduzir drasticamente as políticas sociais, os Estados recorreram ao endividamento. Assim explodiu a dívida pública externa. Dependentes da oscilação e da especulação das taxas de juro, os Estados viram-se na contingência de baixar os seus gastos (investimentos) sociais.

A segunda causa da prosperidade europeia nestes últimos 70 anos foi o de não precisar fazer despesas militares. A segurança europeia estava garantida pelos EUA, por meio da Otan. Esse pilar acaba de ruir com a guerra da Ucrânia. Todos os países europeus estão a rever os seus orçamentos, de modo a aumentar as despesas militares e as suas contribuições para o reforço da Otan. Esta, entretanto, se prepara para novas expansões nos países com fronteiras com a Rússia. Se a Alemanha cumprir o que promete (gastar 2% do PIB em armamentos), será dentro de anos o quarto exército mais poderoso do mundo. Ora, é sabido que, como o orçamento não é infinitamente elástico, o dinheiro que abundar para a compra das armas certamente faltará para melhorar as escolas, a saúde pública etc., em suma, para sustentar o bem-estar social.

Neste momento, resta à Europa o terceiro pilar do seu bem-estar, os investimentos das suas empresas nos recursos naturais existentes em outros continentes e os avultados lucros que geram. Também esse pilar está ameaçado, não só pela concorrência de outros países, como pela resistência dos Estados onde esses recursos existem, isto para não falar da violência paramilitar que rodeia cada vez mais os empreendimentos em mineração. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O fim da Europa Ocidental?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo