Educação
O Febeapá, aqui e acolá
A capacidade destrutiva e o festival de besteiras resultantes da exacerbação de certezas


Começamos por aqui, nos Tristes Trópicos. Dias atrás, os sites UOL e G1 reproduziram os ensinamentos oferecidos à moçada pelos slides da Secretaria de Educação de São Paulo:
“A proibição do uso de biquínis foi adotada por Jânio Quadros em 1961, quando ele era prefeito de São Paulo. Ele emitiu um decreto vetando o uso de biquínis nas praias da cidade. A justificativa de Quadros era que o traje de banho seria uma afronta à moral e aos bons costumes. Esse impedimento também causou grande repercussão na época e gerou protestos de mulheres”.
Jânio realmente proibiu o biquíni, mas a medida foi tomada quando ele era presidente, com foco nas praias do País, não da capital paulista.
Na Aula 25, para estudantes do 8º ano sobre “os abolicionistas”, o slide da secretaria de Ricardo Feder afirmava ter sido Dom Pedro II, e não a filha, Princesa Isabel, quem assinou a Lei Áurea em 1888 para o fim da escravidão no Brasil.
Tais descalabros históricos trouxeram-me à lembrança o Samba do Crioulo Doido, obra-prima de fina ironia do escritor Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta.
Foi em Diamantina onde nasceu JK
Que a princesa Leopoldina
a resolveu se casar
Mas Chica da Silva tinha
outros pretendentes
E obrigou a princesa a se
casar com Tiradentes
Laiá, laiá, laiá, o bode que deu
vou te contar
Laiá, laiá, laiá, o bode que deu
vou te contar
Joaquim José, que também
é da Silva Xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu Pedro Segundo
Das estradas de Minas,
seguiu pra São Paulo
E falou com Anchieta
O vigário dos índios aliou-se
a Dom Pedro
Acabou com a falseta
Da união deles dois ficou
resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão
E foi proclamada a escravidão
Assim se conta essa história
Que é dos dois a maior glória
A Leopoldina virou trem
E Dom Pedro é uma estação também
Oh-oh-oh, o trem tá atrasado
ou já passou?
Oh-oh-oh, o trem tá atrasado
ou já passou?
O humor de Sérgio Porto, o Stanislaw, não perdia vaza. Em uma de suas crônicas no livro Febeapá – O Festival de Besteira Que Assola o País, o Ponte Preta retomou o tema das falas que sucumbem aos desencontros linguísticos e, assim, homenageiam o refrão de Machado de Assis: o grotesco é o ridículo tomado a sério.
“Quem fala diversas línguas – convém esclarecer, embora não venha ao caso – é poliglota e, se estamos dizendo isto, é para aproveitar a oportunidade e tirar uma dúvida de certo cantor da Rádio Nacional que, noutro dia, referindo-se ao genro de Khrushchev, que aqui esteve para uma temporada de comédia, explicou:
– O homem é bárbaro. Fala russo, francês, inglês, alemão e italiano. É um troglodita”.
Acolá, nas plagas de Tio Sam, um grupo de libertários elaborou o Free Town Project, um plano para assumir o controle de uma cidade americana e eliminar completamente os governos municipais.
Em 2004, eles voltaram seus olhos para Grafton – New Hampshire –, uma cidadezinha pouco povoada, servida por uma estrada bem pavimentada. Quando chegaram em Grafton, o financiamento público encolheu para praticamente tudo: o corpo de bombeiros, a biblioteca, a escola. Leis estaduais e federais tornaram-se pouco ouvidas nos espaços da cidade. Os cidadãos amantes da liberdade ignoraram as leis e regulamentos sobre o descarte de alimentos. Os ursos sentiam o cheiro de comida. O lixo se acumulou nas ruas.
O livro de Matthew Hongoltz-Hetling A Libertarian Walks Into a Bear é a história engraçada e aterrorizante do que pode acontecer quando o governo desaparece da cena. Tiroteio, assaltos e políticos esfaqueados. A vida livre frequentemente terminava nas garras de um urso.
O pesadelo em que se transformou o sonho libertário em Grafton lançou os indivíduos livres no trágico embate entre o desespero e a desesperança. A cidadania retrocede para a situação hobbesiana do bellum omnium contra omnes.
Hobbes compreendeu a capacidade destrutiva do conflito fundado na exacerbação das certezas que infestam a consciência dos fanáticos da racionalidade em combinação com o credo individualista. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
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