Opinião

O fascismo precisa ser isolado

Isso para que a coalizão eleita possa governar da forma a mais participativa possível

Foto: Sergio Lima / AFP
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“Quem possui a terra, possui o homem.”
André Rebouças.

Um dos maiores desafios para o Brasil é a democratização da riqueza e da renda.

Não se pode almejar democracia política com tal concentrarão de renda e riqueza.

As manifestações antidemocráticas a que assistimos refletem esse descompasso.

Uns poucos empresários são capazes de bloquear estradas, obrigando funcionários a participarem de atos antidemocráticos, alguns deles, francamente terroristas.

Vale notar que esses vândalos não estão protestando, quer no sentido etimológico quer no senso sentido mais profundo do termo.

Em “Falar e silenciar”, Anselm Grün discorre a propósito: “Quando pensamos em protesto imaginamos algo voltado contra alguém. Mas na verdade a palavra significa ‘apresentar-se publicamente como testemunha’, ‘afirmar algo em público’. Em ‘protesto’ está contida a palavra ‘testari’, que significa ‘ser testemunha’, ‘testificar’ e o prefixo ‘pro’, que tanto pode significar ‘diante’ como ‘para.”

Fica patente que terror e protesto são antitéticos, de forma alguma podem ser confundidos ou assimilados.

Creio, porém, que representam sinais que não podem ser minimizados.

Cabe a rápida constituição de redes as mais amplas possíveis para que o fascismo seja paulatinamente isolado, mas, principalmente, para que a coalizão eleita possa governar da forma a mais participativa possível.

Nesse sentido, temas como alimentação e abastecimento deveriam ocupar o centro da agenda da transição.

Na obra citada, Anselm Grün aclara: “Dou testemunho na presença de outros e proclamo algo a eles. Não me levanto contra alguém, mas em prol de alguém ou de algo. Muitos poetas e escritores veem suas obras como protesto contra a opinião vigente. Na verdade, o protesto verdadeiro nunca pretende falar contra alguém, mas se empenha em prol de alguém ou de uma causa. Minha poesia ou meu artigo se transforma em protesto quando dá testemunho de um modo novo de pensar e de falar. O protesto autêntico não acusa, mas testifica. Ele o faz de forma consciente em uma discussão com opiniões e palavras.”

De uma maneira muito bonita, Grün complementa: “Para os monges, uma palavra sem ação não tem valor.”

Se, de fato, acreditamos na democracia e na democratização da renda e da riqueza não há tempo a perder: pautemos o direito à terra e à água como prioridade.

O atual presidente da Câmara não coloca em votação o projeto de emenda constitucional que inclui o direito à terra e à água no artigo 6 da Constituição Federal, tornando-os direitos humanos fundamentais, universais.

Caberá pressioná-lo para que o faça o quanto antes e negociar com os futuros candidatos a presidente da Casa para que se comprometam a fazê-lo.

Nesse sentido, o premiado Itamar Vieira Júnior, autor de “Torto Arado” denunciou recentemente a exclusão dos negros no acesso à terra, que irá se irradiar, mais amplamente, na falta de acesso aos meios de produção, a terra, em primeiríssimo lugar.

Com efeito, não se pode pensar em relações livres que não estejam baseadas em seres livres.

Mas seria livre quem não tem acesso sequer a um pedaço de terra em que plantar ao menos para o consumo próprio? Não são os agricultores familiares os responsáveis por alimentar o mundo, cabendo-lhes 70% da produção de alimentos? Destes, não são as mulheres a maioria dos agricultores familiares (em torno de 70% deles)? No Brasil, não são as mulheres negras a maioria dos agricultores?

Como podem opressores e oprimidos manterem diálogo, em condições tão desesperadoramente diferentes?

Uma resposta, fornece-nos Grün: “Não podemos não comunicar.’ Esta famosa afirmação do psicólogo austríaco Paul Watzlawik descreve nossa vida como comunicação incessante. Encontramo-nos constantemente em diálogo. Falamos, mesmo quando nos calamos; expressamos algo com a postura do nosso corpo; interagimos uns com os outros…A língua possibilita o diálogo. Para os filósofos gregos, este representava uma importante fonte de conhecimento. Prezavam o diálogo como lugar em que as pessoas se encontram e se encorajam mutuamente a conhecer cada vez mais o mistério da existência humana.”

Em outra obra, “O que você pensa sobre a religião”, Grün se aprofunda nas condições para o diálogo: “A humildade (em alemão: ‘Demut’) é a coragem (em alemão: ‘Mut’) de mergulhar na minha própria humildade…Hoje, no entanto, precisamos enfatizar que na fé se trata essencialmente de duas coisas: de uma experiência de fé, uma experiência espiritual, e da combinação de experiência e ação. São Bento chama isso de ‘ora et labora’, rezar e trabalhar. O teólogo austríaco Paul Zulehner chama essa tensão a tensão entre mística e política. Hoje, no entanto, há o perigo de separar a espiritualidade totalmente da atuação, da prática cotidiana. Assim, a espiritualidade se tornaria realmente um narcisismo que gira somente em torno de nós. O autor estadunidense Ken Wilber (nascido em 1949) acusa alguns movimentos espirituais em seu país de ficarem sem consequências políticas e sociais. Jesus, ao contrário disso, quer que moldemos também o mundo em seu espírito, por meio da experiência da proximidade de Deus.”

Que religião não apoiaria isso? Não usemos, portanto, as religiões como artifício para diferenças que são, de fato, políticas.

Sem máscaras, a verdade pode libertar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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