Cláudio Couto

Cientista Político na FGV-EAESP

Opinião

O extremismo edulcorado de Michelle e Tarcísio no 7 de Setembro

O choro da ex-primeira dama e a moderação do governador são como a serenidade de Bolsonaro diante do tribunal: apenas expedientes de dissimulação

O extremismo edulcorado de Michelle e Tarcísio no 7 de Setembro
O extremismo edulcorado de Michelle e Tarcísio no 7 de Setembro
Michelle Bolsonaro e Tarcísio de Freitas no 7 de Setembro em São Paulo. Fotos: Nelson Almeida/AFP
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As manifestações bolsonaristas de 7 de setembro de 2025 ofereceram mais uma amostra de algo que, embora conhecido, não tem recebido a devida atenção: o extremismo com bons modos. Dois exemplos notáveis dessa modalidade extremista foram as performances de Michelle Bolsonaro e Tarcísio de Freitas na Avenida Paulista.

No caso da ex-primeira-dama, o que se viu foi uma esposa chorosa, lamentando pela situação humilhante a que ela e sua família teriam sido submetidas, exigindo-lhe um labor extra para dar conta de confortar o marido e ainda desempenhar suas atividades políticas. Segundo Michelle, sequer sua liberdade religiosa é respeitada, pois não lhe é permitido reunir em casa (que serve de cárcere para o esposo) outros crentes para que orem juntos.

As lamúrias sentidas de Michelle contrastam fortemente com a dureza com que Bolsonaro sempre tratou os que padecem – exceto quando o sofredor é ele próprio. Deu mostras seguidas disso durante a pandemia, zombando de pessoas com falta de ar, dizendo não ser coveiro e que era preciso parar de chorar, dentre outras atrocidades. Contudo, mesmo antes da pandemia o homem por quem Michelle se condói construiu uma carreira política baseada na violência. Afirmava ser a favor da tortura, que a ditadura matou menos gente do que deveria, que um presidente deveria ser fuzilado, que uma colega deputada não merecia sequer ser estuprada, que policiais deveriam ser condecorados por matar pessoas, que negros de um quilombo podiam ser pesados como gado e não serviam nem para reprodução, dentre tantos outros despautérios.

O que distingue Michelle de Jair? Certamente não é o grau de extremismo, mas o estilo. Enquanto o ex-presidente se construiu explicitando truculência e crueldade, a ex-primeira-dama veste o figurino da mulher devota e misericordiosa, temente a Deus e orientada por profundas crenças religiosas em tudo que faz e diz. Nisso, quando não adota a fala lamuriosa dos sofredores, faz o discurso exaltado, porém suave, de quem prega. A violência das falas de Michelle não aparece na forma, mas no conteúdo. Para ela, adversários têm pacto com o demônio e consagram até mesmo os edifícios públicos a Satanás; a disputa política é uma guerra espiritual entre o bem e o mal absolutos. Difícil imaginar algo mais autoritário e intolerante do que isso; é de fazer inveja ao Talibã.

Tarcísio de Freitas, outro extremista com bons modos no palco do 7 de setembro, adota estilo distinto. Fala menos de Deus e da religião, revestindo-se da placidez dos tecnocratas. Essa foi sua tônica desde a campanha eleitoral de 2022, embora com algumas escorregadelas. A mais notável foi quando mostrou não se importar com as mortes causadas pela brutalidade de sua polícia, afirmando “não estar nem aí” com isso – posição pouco condizente com a pretensa (e delirante) imagem de “bolsonarista moderado”, um oxímoro.

Nas últimas manifestações o governador paulista manteve o tom de voz ameno, mas recheou o discurso com falácias e imoderação. Para defender a atual proposta de anistia aos golpistas bolsonaristas, mencionou a Lei da Anistia de 1979, destacando que ela teria sido a causa da volta à vida política de banidos pela ditadura militar, bem como ingresso de tantos outros. Para ilustrar seu ponto, afirmou que o PT não existiria sem aquela anistia e que até mesmo participantes da esquerda armada foram perdoados. Porém, omitiu que foi também assegurada a impunidade dos que romperam com a democracia em 1964, impondo-nos 21 anos de assassinatos, desparecimentos, torturas, censura, arbítrio, perda de direitos políticos, bipartidarismo forçado e a impossibilidade de votar para presidente, governadores e prefeitos de capitais e cidades categorizadas pelos autocratas como “áreas de segurança nacional”.

Ao tratar daquela anistia apenas como instrumento para a participação da esquerda na vida democrática após a ditadura militar, Tarcísio optou por ocultar o porquê de ela ter ocorrido naquele contexto. Ora, foi uma imposição da própria ditadura para permitir que a abertura democrática ocorresse; sem Lei da Anistia, a lenta e manietada transição democrática demoraria ainda mais, prolongando o autoritarismo. Ou seja, ela foi o acordo possível diante de uma chantagem que o regime autoritário impôs à oposição democrática e à sociedade brasileira. Hoje, como se sabe, somos alvo de outra chantagem, patrocinada pelo bolsonarismo junto ao governo de Donald Trump: ou se tem anistia, ou sanções seguirão sendo aplicadas a nosso país.

É notável como o mesmo método é empregado pela nova geração dos autocratas de 1964: ou se garante aos golpistas autoritários a impunidade, ou eles nos infligirão danos. Como Tarcísio finge ser um moderado, tenta disfarçar a extorsão de que é cúmplice recorrendo a falácias. Outra delas é o apelo à tradição: como tivemos muitas anistias ao longo de nossa história, não haveria razão para que não a tivéssemos de novo. Faz lembrar a piada do sujeito que dizia ser fácil parar de fumar, pois ele próprio já havia parado inúmeras vezes. Ora, só tivemos várias anistias porque o mal do golpismo sempre esteve presente; e esteve sempre porque nunca punimos os golpistas como deveríamos, estimulando assim novos golpes.

Outra falácia tarcisiana (mais propriamente mentira do que falácia) é a afirmação de que Bolsonaro não pode ser condenado por não haver provas contra ele. É uma falsidade tão flagrante que intriga a desfaçatez com que o governador paulista a consegue enunciar. Diante do imenso cabedal de provas documentais e testemunhais, espanta ver Tarcísio mentir desbragadamente sem sequer enrubescer. Até mesmo o ex-presidente fez questão de confessar seus intentos golpistas durante o julgamento, reconhecendo que decidiu recorrer a instrumentos “constitucionais” como estado de defesa e estado de sítio (num contexto em que eles eram constitucionalmente incabíveis) por saber que não teria como vencer na Justiça Eleitoral.

A acusação desferida contra Alexandre de Moraes, de impor uma tirania, escora-se justamente nesse conjunto de falácias e mentiras. A declaração dada poucos dias antes do ato pela impunidade, afirmando não confiar na justiça, também tem como base essa falsificação dos fatos. Nisso, Tarcísio segue o modus operandi de seu mentor e da ultradireita mundo afora: a mentira reiterada como instrumento de ação política.

A decisão recente, de explicitar seu compromisso com os cânones do bolsonarismo, ajuda a revelar não só o verdadeiro Tarcísio – para quem teimava em não o ver como ele realmente é. Ela também evidencia algo inescapável em movimentos extremistas como o integrado pelo governador paulista: não há como pertencer a eles sem atuar segundo sua lógica. Até mesmo Bolsonaro adota a brandura quando lhe convém (como se pôde ver em sua mansidão quando foi inquirido no STF), mas nem por isso se torna um moderado, pois não é de sua natureza. Pois a moderação de Tarcísio é como a serenidade covarde e oportunista de Bolsonaro diante do tribunal: apenas um expediente de dissimulação.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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