

Opinião
O Estado bandido
A entrega deliberada da Amazônia à soberania do crime organizado é apenas um dos elementos testemunhais da atuação delinquente deste governo


A expressão “Estados bandidos” foi criada nos EUA na era Clinton e transformada em “Estados meliantes” na era Bush. Ela designava um conjunto de Estados inimigos dos EUA que, supostamente, agiam fora da lei. Se há um Estado, no nosso tempo, que se encaixa mais na noção de Estado bandido é o Estado brasileiro, principalmente na sua relação violação das leis e a Constituição, de violência contra as populações vulneráveis e de depredação dos bens nacionais que deveria proteger.
É certo que o Estado sempre foi um instrumento dos crimes e da exploração das elites. Mas o seu caráter delinquencial nunca foi tão agudo como no governo Bolsonaro, o que expõe também a natureza delinquencial do atual governo. A entrega deliberada da Amazônia à soberania do crime organizado é apenas um dos elementos testemunhais da atuação delinquente do Estado e do governo. O crime brutal contra Bruno Pereira e Dom Phillips é um ato que deve ser compreendido como praticado pela orientação criminosa do Estado, agindo pelas mãos de bandidos por ele estimulados.
Veja-se que o contexto do assassinato brutal de Bruno e Dom tem até uma semelhança simbólica com determinadas condutas de Bolsonaro. Bolsonaro foi multado por praticar pesca ilegal na região de Angra há alguns anos. Em dezembro de 2018, depois de eleito, a multa foi anulada. Já sob o seu governo, em 2019, o Ibama exonerou o servidor José Augusto Morelli do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental. Ele foi responsável pela operação que flagrou Bolsonaro praticando pesca ilegal.
Bruno Pereira era chefe da Divisão da Funai para tribos isoladas. Depois de denunciar pesca ilegal e outras atividades criminosas nas terras indígenas foi exonerado do cargo. Licenciou-se da Funai para empreender atividades de proteção aos índios e ao meio ambiente e foi brutalmente assassinado. Tanto no caso do Ibama quanto no da Funai, o Estado e o governo agiram deliberadamente para punir aqueles que cumprem a lei e proteger aqueles que praticam o crime. Estes são apenas dois exemplos dentre inúmeros, em que o Estado e o governo agem contra os servidores corretos e contra a lei e em favor do crime. O caso da demissão do superintendente da Polícia Federal da Amazônia, delegado Alexandre Saraiva, após a maior apreensão de madeira ilegal, tem a mesma natureza.
Note-se que não se trata de uma omissão, o que já seria algo grave. O Estado e o governo agem de forma deliberada e intencional para proteger as atividades criminosas. Quando o governo desmantela órgãos de proteção, fiscalização, investigação e controle como o Ibama, a Funai, o ICMBio, a Polícia Federal, entre outros, está dando um salvo-conduto para as organizações do crime agirem livremente sob a proteção do Estado e do governo. Na chefia desses órgãos, são nomeadas pessoas com a função de coibir a atividade legal dos servidores e aliviar a atividade criminosa dos bandidos. Esta é verdadeira natureza do Estado e do governo: são bandidos.
O próprio Ministério Público, por omissão, favorece a atividade das organizações criminosas na Amazônia. Numerosas denúncias documentadas chegaram às autoridades de vários órgãos públicos, e o que foi feito? Praticamente nada. Quem será punido e responsabilizado por essas ações ou omissões criminosas? Crimes de omissão também cometem a Câmara dos Deputados, o Senado, as bancadas parlamentares e o Congresso Nacional como um todo. Quantas comissões essas casas legislativas ou as bancadas parlamentares enviaram à Amazônia para averiguar a situação dos indígenas, do garimpo ilegal, da destruição da floresta, da pesca criminosa, do narcotráfico, das queimadas?
A maioria esmagadora dos parlamentares brasileiros só quer saber de gabinetes, cargos, privilégios e vaidades. Enquanto isso, o povo pobre sofre todo tipo de violência, de humilhações, de fome e de misérias. Chorar mortos depois de mortos e emitir declarações porque pega bem é um ato de hipocrisia. O que se quer é que os parlamentares ajam, fiscalizem in loco, cobrem, cumpram com o seu dever de defender o povo e salvar vidas.
Se devemos cobrar e exigir das autoridades para que cumpram o seu dever, é preciso ter consciência que sob Bolsonaro não há nenhuma salvação, nenhuma esperança. É preciso empenhar todas as energias para removê-lo. É preciso exigir dos candidatos democráticos compromissos claros com a proteção dos indígenas, das florestas, dos rios, da biodiversidade e das riquezas da Amazônia. É preciso exigir desmatamento zero e o confisco das terras ocupadas e devastadas ilegalmente. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Estado bandido”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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